O debate entre católicos e protestantes existe desde a época da Reforma, em 1517. A questão levantada por Lutero é primeiramente Eclesiológica e depois assume outro viés, como trataremos adiante.
Primeiramente, antes de qualquer debate, é necessário estabelecer quais as premissas sustentam cada pensamento. No lado Católico, não há dúvida quanto às premissas que orientam o pensamento da Igreja. O Credo (dogmata) e a vasta Doutrina Católica estabelecem o alicerce da Fé e da Razão, sustentáculo da Civilização Ocidental. Ademais, os católicos possuem um “Guardião da fé” – Igreja Católica Apostólica Romana, que sempre se pronuncia sobre os pontos da doutrina que carecem de esclarecimento.
No lado Protestante, todavia, há uma grande dificuldade em estabelecer as premissas, pois há vários desdobramentos, várias correntes e nenhum Credo, nenhuma Doutrina. Por isso, nosso esforço inicial é estabelecer um critério de pensamento protestante, uma espécie de linha de raciocínio que seja comum à maioria das suas profissões de fé.
Lutero apresenta como fundamento de seu cisma, cinco solas, são elas: sola gratia, sola scriptura, sola fide, solus Christus, soli Deo gloria. Trataremos somente das três primeiras, por motivos que explicaremos adiante.
Sola Gratia
As boas obras e as virtudes são ineficazes no plano salvífico, pois Deus escolhe a quem será dada a Graça, conforme seus próprios desígnios, irrelevante o mérito de cada um. Segundo este princípio não existe santidade ou se existe ela é inútil para a salvação das almas. Simul iustus et peccator (ao mesmo tempo justo e pecador);
Sola Scriptura
Somente as Sagradas Escrituras possuem a Verdade. As Escrituras são a única fonte do conhecimento religioso. Este princípio nega a Tradição, o Magistério e a autoridade da Igreja nas questões de Fé. Defende também o livre exame e interpretação da Bíblia;
Sola Fide
Somente através da Fé (analogia fidei) é possível conhecer a Deus. Esse princípio desloca a Fé do plano racional para o plano afetivo. Em outras palavras, a razão, a ciência e a filosofia não devem ser utilizadas no estudo de Deus e da Criação. A razão, por ser humana, está doente por causa da queda do Pecado Original.
Respostas:
1)
Quanto à "Sola Gratia": Consiste na negação do maior dos mandamentos: "Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo". O verbo amar, nesse caso, implica num fazer, numa forma de agir (ou não agir) em relação ao próximo, e não num simples sentimento. É a raiz da Moral. Ora, se a Religião é a origem de toda moral, como pode uma religião negá-la? A despeito de tantas passagens das Escrituras, desde a Aliança no Sinai, passando por Provérbios, indo até os Evangelhos, Epístolas e Apocalipse. Tudo o que lemos cuida de retidão, temor a Deus e amor ao próximo. Qual o sentido de tanta insistência na virtude, se no fim, Deus não a levasse à conta? A virtude é tratada quase que exaustivamente em todas as Escrituras e negá-la denota uma ignorância invencível ou uma desonestidade cruel. A Igreja Católica não nega a Graça, pois reconhece a infinita misericórdia de Deus, assim como reconhece a patologia espiritual que aflige a humanidade após a queda do Pecado Original. Ocorre que sem reconhecimento dos méritos não haveria sentido o livre-arbítrio. Quem não tem liberdade para agir não pode ser culpado ou recompensado pelas consequências de seus atos. A própria noção de pecado não teria sentido. Ora, Deus não faz nada sem sentido.2)
Quanto à "Sola Scriptura": Trata-se da negação da Doutrina e Magistério da Igreja, uma vez que só se reconhece autoridade às Sagradas Escrituras. Para facilitar a compreensão dos erros constantes nesse Princípio, é importante uma reflexão histórica, qual seja: a história do povo hebreu começa por volta do ano 4.000 a.C, na cidade de Ur, na região da Caldéia da Mesopotâmia... Em meados do ano 1.600 a.C, na época de Jacó, uma grande fome assolou o povo judeu, que precisou ir para o Egito, ficando lá por cerca de 400 anos. E como sabemos disso? Graças à Tradição. Foi a tradição oral dos judeus que manteve a Palavra de Deus viva até a descoberta da escrita, já que a escrita só foi conhecida pelos judeus em torno do ano 1250 a.C. Logo, não é errado concluir que as Escrituras vêm da Tradição. E o que dizem as Escrituras sobre a Tradição? Vejamos:
“Como (de nossa pregação) recebestes o Senhor Jesus Cristo, vivei nEle, enraizados e edificados nEle, inabaláveis na fé em que fostes instruídos, com o coração a transbordar de gratidão” (Colossenses 2:6-7 – grifo nosso);
“Ide por todo o mundo; ensinai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado” (S. Marcos 16; 15-16 – grifo nosso);
“Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (S. Mateus 28: 20 – grifo nosso);
Em todas essas passagens (e em tantas outras) o ato de crer é um exercício da inteligência, que admite uma Doutrina, uma Tradição fundada no testemunho de quem não pode errar. Logo, a Tradição vem das Escrituras. Mas quis Jesus Cristo fundar uma Tradição? Vejamos:
“Ele chamou para si os seus discípulos, e deles escolheu doze, a quem chamou de apóstolos” (S. Lucas 6:13).
Ora, com qual sentido Jesus escolheu os doze apóstolos? Para fundar uma Igreja. Ou seja, as Escrituras vêm da Tradição (velha aliança) e a Tradição (nova aliança) vem das Escrituras. Para a Igreja, as Sagradas Escrituras são A Palavra de Deus. Se assim não fosse, a Igreja não manteria essa Palavra viva e intata através dos séculos. Todavia, Deus não só nos comunica através dela. O professor Orlando Fedeli dizia: "Protestante é aquele que acredita não que 'o Verbo se fez carne' – 'Verbum caro factum est' (Jo. I, 14), mas que o Verbo se fez livro: a Bíblia."...Ora, Deus nos fala através das Escrituras, da natureza e seus símbolos, através dos Santos e seu testemunho, através da Santa Igreja (que é o Corpo Místico de Cristo). Enfim, Deus nos fala da maneira que lhe apraz.
3)
Segundo Karl Barth, pastor da igreja reformada:Quanto à “Sola Fide”: Consiste na negação à Analogia Entis – a analogia do Ser, que se opera através da razão. Em outras palavras, condena o uso da razão (filosofia, ontologia) nas questões religiosas. Faz da Fé um sentimento afetivo, e não um assentimento firme da inteligência à Doutrina do Cristo. A analogia entis permite o conhecimento através da compreensão. Nas palavras de Mario Ferreira dos Santos: “A Analogia é a síntese entre o semelhante e o diferente”. Ou seja, A analogia entis permite a compreensão da realidade, utilizando-se de conceitos universais, apreendidos através dos sentidos e transmitidos através da linguagem. Não é nosso intuito aprofundar esse interessante tema, mas obter as noções gerais sobre a importância da analogia entis tanto na religião, quanto na compreensão dos conceitos em geral.O problema entre Fé e Razão remonta aos primórdios do Cristianismo. Não nos deteremos numa análise diacrônica a respeito do diálogo sobre essas faculdades, nem esgotaremos o assunto sobre a analogia entis. Importa saber o que católicos e protestantes tem a dizer sobre elas.
“...Por isso sustento que a Analogia Entis é uma invenção do anticristo, e penso que exatamente por causa dela não é possível tornar-se católico...Quero acrescentar ainda, que todas as outras razões que se podem aduzir para não se tornar católico parecem-me pueris e sem importância” (Dogmática Eclesial).
Para Karl Barth, a sola fide chega a ser a diferença essencial entre católicos e protestantes. Mas o que a Igreja Católica tem a dizer sobre a Fé e a Razão? Vejamos:
“A fé...é uma virtude sobrenatural, pela qual, prevenidos e auxiliados pela Graça de Deus, cremos como verdadeiro o conteúdo da revelação, não em virtude de sua verdade intrínseca, vista pela luz natural da razão, mas por causa da autoridade de Deus que não pode enganar-se ou enganar-nos.” (PIO IX, Concílio Vaticano I, Cap. 3).
Ademais, na dicção do Pe. Leonel Franca, in verbis:
“A fé, portanto, não é uma persuasão subjetiva, é uma convicção sólida e fundada do que se não vê. O que é a experiência para as coisas sensíveis e a demonstração para as verdades científicas da ordem natural, é a fé para o mundo das realidades invisíveis: prova segura e indubitável de sua existência.” (Pe. Leonel Franca – A Psicologia da Fé).
E sobre a Razão:
Para a Igreja Católica, a fé exige um método e a crença numa doutrina. Assim, surge a Teologia, que por seu nome já reflete a importância da razão nos estudos da religião. Para explicar melhor, vejamos o que diz o Cardeal Ratzinger num trecho de uma carta a um matemático ateu:
“Ilustríssimo Senhor Professor Odifreddi, (...) 3. Uma função importante da teologia é a de manter a religião ligada à razão, e a razão, à religião. Ambas as funções são de essencial importância para a humanidade. No meu diálogo com Habermas, mostrei que existem patologias da religião e – não menos perigosas – patologias da razão. Ambas precisam uma da outra, e mantê-las continuamente conectadas é uma importante tarefa da teologia... (La Repubblica, Roma – 24/09/2013).”Bento XVI não poderia ser mais claro: a analogia entis é necessária para a compreensão das verdades de Fé. Uma não é saudável sem a outra. Santo Tomás de Aquino imortalizou esse equilíbrio em toda sua vida e obra. Ora, “As cinco vias” (Finalismo, A contingência, O movimento, As causas e efeitos, Os graus de perfeição) consistem numa demonstração da existência de Deus. Um método de prova, através do uso da Razão. O Tomismo, ao contrário do que dizem alguns, não menospreza a Fé, pelo contrário, firma-lhe os pés no chão. Enfim, encerramos esse tópico com a célebre frase: “Entre a Fé e a Razão Deus não reconhece divergências.”
Em suma:
De fato, existe uma diferença grave entre católicos e protestantes no tocante às cinco solas. Mas por que não falamos sobre as duas últimas (solus Christus, soli Deo gloria.)? Porque acreditamos haver uma divergência essencial, observada recentemente por um padre brasileiro, que desloca a discussão do campo Eclesiológico para o campo Cristológico. É o que trataremos na segunda parte deste artigo.
Confira a segunda parte aqui