Na primeira parte deste artigo, tratamos de três solas defendidas por Lutero: sola gratia, sola scriptura e a sola fide. É dever de consciência fazer algumas considerações em relação à primeira parte, antes de entrarmos na segunda.
Quanto à sola scriptura, tratamos da negação à Tradição da Igreja Católica por parte dos protestantes. Apresentamos fatos históricos que comprovam que as Sagradas Escrituras são fruto de uma longa tradição oral do povo hebreu e que a escrita só foi descoberta por ele em 1250 a.C., aproximadamente. Cuidamos também de demonstrar que as Escrituras estão repletas de passagens que defendem uma Nova Aliança e que essa Aliança funda a Igreja e a Tradição Católica. Na verdade, a Revelação consiste na soma das Escrituras e da Doutrina que foi fundada por Cristo e propagada pelos apóstolos. Isto é, o que consta na Bíblia é a verdade, mas nem toda a Revelação está nela, como está escrito:
“Fez Jesus, na presença dos seus discípulos, ainda muitos outros milagres que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos, para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.” (S. João 20: 30-31).
Todavia, faltou falar sobre a livre interpretação da Bíblia*.
É importante ressaltar o caráter contraditório e ilógico da livre interpretação bíblica. Ora, se só devemos ter como verdade o que está na Bíblia, como pode essa verdade prevalecer a despeito de tantas interpretações possíveis? E se as várias denominações protestantes estão corretas ao interpretar tão diversamente a Bíblia (algumas negam até a divindade de Cristo), por que não reconhecer a “interpretação” católica? Pior, como Lutero pode defender a supremacia das Escrituras e ao mesmo tempo identificar “heresias” e “erros” que o levassem a suprimir parte delas, e as partes não suprimidas, retraduzidas ao sabor de sua conveniência? Ressaltemos que nem a Igreja Católica se deu a esse direito. Ora, podemos aduzir que com a livre interpretação da Bíblia cada leitor é uma igreja. Mas só pode haver uma, como está escrito:
“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (São Mateus, XVI, 18 – grifo nosso).
E se ainda resta dúvida:
“Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal.” (II Epís. de São Pedro, I, 20).
Mas o que dizem as Escrituras sobre alteração do texto bíblico? Vejamos alguns trechos:
“Toda a palavra de Deus é provada, é um escudo para quem se fia nele. Não acrescentes nada às suas palavras, para que ele não te corrija e sejas achado mentiroso” (Pr. XXX: 5-6);
“Não ajuntareis nada a tudo o que vos prescrevo, nem tirareis nada daí, mas guardareis os mandamentos do Senhor, vosso Deus, exatamente como vos prescrevi” (Dt. IV: 2);
“De fato, não há dois (evangelhos): há apenas pessoas que semeiam a confusão entre vós e querem perturbar o Evangelho de Cristo. Mas, ainda que alguém – nós ou um anjo baixado do céu – vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema. Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele excomungado!” (Gl. I: 7-9).
São Paulo é taxativo. Lutero está longe de ser um santo ou um anjo, aliás, sua biografia merece um estudo à parte. Mas ainda que fosse ele um anjo, nenhuma autoridade teria para alterar as Escrituras, suprimi-las ou interpretá-la conforme sua conveniência.
O Padre Paulo Ricardo, no seu curso online: Por que não sou protestante**, sustenta a tese de que o problema protestante não é eclesiológico, mas cristológico. Interessante é que essa tese faz todo o sentido, seja porque é embasada pela vasta doutrina católica, seja porque serve pra respaldar ainda mais a refutação às cinco solas, em especial às não tratadas antes, solus Christus e à soli Deo gloria. Diremos que essa tese é a base de sustentação ao argumento católico e que é essencialmente o que diferencia católicos e protestantes.
Optamos por essa abordagem cristológica, tanto porque nos parece uma novidade no ramo da apologética, quanto porque serve pra reunir todo o discurso em torno de um único argumento. Embora que ainda não tenhamos encontrado outro autor que tratasse dela diretamente, é bem provável que alguém já o tenha feito. Até porque, como veremos, o argumento cristológico é totalmente amparado pela Igreja. Todavia, advertimos que as demais abordagens devem ser estudadas a fim de auxiliar o debate sobre os ritos católicos isoladamente.
Para os católicos, Cristo é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. A Segunda Pessoa da Trindade possui duas naturezas: unidas, mas não confundidas; distintas, mas não separadas. As naturezas divina e humana coexistem numa única pessoa, sem perderem suas faculdades. A Communicatio Idiomatum – Comunicação dos Idiomas (ou das naturezas) é consagrada pela Doutrina e pelo Credo da Igreja. Funda-se no princípio 'Verbum caro factum est' (Jo. I, 14). O Verbo se fez carne, por isso a Carne de Cristo é adorada. As duas naturezas estão em Cristo através da União hipostática (hipóstase). Se adorarmos a Pessoa de Cristo, adoramos as suas duas naturezas. Do contrário, seria adorar Cristo pela metade.
O Padre Paulo cita São João Damasceno (675 - 749), que por sua vez faz menção ao Concílio da Calcedônia:
“Uma vez que Deus-Verbo se encarnou, a carne de Cristo é adorada, não por si mesma, mas porque o Verbo de Deus está unido a ela segundo a hipóstase” (referência ao Concílio de Calcedônia).
A humanidade de Cristo é a ponte que liga os homens a Deus. Assim fica fácil de perceber porque os primeiros padres da Igreja chamavam Nossa Senhora de Deipara ou Theotokos (Mãe de Deus). Segundo Tertuliano (160 -220): “Caro salutis est cardo” – A Carne é o eixo da salvação. A Humanidade de Cristo é um dos maiores mistérios do Cristianismo. A encarnação do Verbo é a realização da Promessa do Velho Testamento que remiu a humanidade.
Para os católicos, Jesus é Deus e Maria é Mãe de Jesus, logo, Maria é Mãe de Deus. O Professor Orlando Fedeli costumava fazer uma analogia com um casal que acaba de ter um filho. Ora, a mãe não concebeu a alma do filho (essa foi criada por Deus), mas somente o corpo. Isso não nos faz dizer que ela é mãe do corpo do filho. Dizemos que ela é mãe do filho, e pronto.
Durante séculos ouvimos a acusação de idolatria, no que se refere ao culto dos santos, à Santidade de Maria e à Economia Sacramental. Ocorre que esses ritos decorrem justamente do conhecimento da União Hipostática, ou seja, do correto conhecimento e da correta adoração a Cristo, nas suas duas naturezas. Em outras palavras, ao invés de nos distanciar de Cristo, esses ritos são o caminho de aproximação a Ele. Optamos por centralizar o discurso na questão cristológica, mas para cada rito e cada matéria da doutrina católica atacada, podemos adotar uma explicação peculiar. Exemplos dessas abordagens não nos faltam entre os doutores da Igreja.
Através da tese defendida pelo Padre Paulo, compreendemos que os ataques protestantes à Igreja como sendo o Corpo Místico de Cristo, aos Santos (hagiologia), aos Sacramentos, à Maria, enfim. Tudo se resume a um ataque à Humanidade de Cristo e ao que decorre dela. Logo, o que parecia ser uma nova ameaça aos fundamentos da Igreja, na verdade, é o retorno às velhas heresias cristológicas e trinitárias dos primórdios da era cristã. Isso levanta a grave questão de que a diferença entre católicos e protestantes não está nos detalhes; está na essência. Se a divergência é cristológica é porque não cremos no mesmo Cristo. Então, tentar conciliar o pensamento católico ao protestante não é ecumenismo, é sincretismo religioso. Assim sendo, ousamos dizer que os movimentos ecumênicos promovidos dentro da própria Igreja são, voluntariamente ou não, o suicídio da Fé Católica.
Confia a primeira parte deste artigo.
Continua...