Ora os filhos de Noé, que
saíram da arca, eram Sem, Cam e Jafeth. Cam é o pai de Canaan. Estes são os
três filhos de Noé, e por eles se propagou todo o gênero humano sobre toda a
terra. Noé, que era agricultor, começou a cultivar a terra e plantou vinha.
Tendo bebido muito vinho, embriagou-se e apareceu nu na sua tenda. Cam, pai de
Canaan, tendo visto a nudez de seu pai, saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos.
Porém Sem e Jafeth puseram uma capa sobre os seus ombros e, andando para trás,
cobriram a nudez de seu pai: assim, tendo o rosto voltado, não viram sua nudez.
Quando Noé, despertando da embriaguez, soube o que lhe tinha feito o seu filho
mais novo, disse: Maldito seja Canaan! Ele será o servo dos servos de seus
irmãos. Depois disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaan seja seu
escravo. Dilate Deus a Jafeth, e habite
Jafeth nas tendas de Sem, e Canaan seja seu escravo. Gênesis, 9, 18-27.
Habite Jafeth nas tendas de
Sem. Quem permite que alguém habite na sua tenda pode mais do que o inquilino,
tem precedência. Isso parece claro. Sem tem precedência sobre Jafeth, tem mais
direitos, digamos assim.
Misteriosa frase de Noé que
descortina uma realidade histórica, simbólica e metafísica das mais belas. Aqui
está exposto apenas uma perspectiva que o autor julga fazer sentido e propõe
como uma interpretação simbólica da bênção de Noé e da irmandade coesa entre
Jafeth e Sem.
Sabe-se que a bênção de um pai
determina a história do filho, do seu inferior. A maldição também acarreta uma
série de consequências negativas para aquele que a sofreu. Na passagem
destacada acima fica claro que a maldição que recaiu sobre Cam fará sua geração
escrava.
Cabe-nos, no entanto, analisar
o trecho que fala da habitação de Jafeth nas tendas de Sem. Antes, porém, não é
difícil dizer que do tronco de Sem saiu o povo semita, o povo hebreu, e sua
descendência, tendo Abraaão, David e culminando no ápice da história com o
nascimento do Verbo Encarnado.
A geração de Sem foi o povo da
Antiga Aliança, o povo da revelação, aquele que prescindiu do conhecimento
filosófico, mas obteve a graça de ser escolhido por Deus para arar primeiro a
sua vinha em vistas do nascimento de Cristo. Pode-se dizer que o povo hebreu
foi o povo sacerdotal, que cultuou o Deus verdadeiro oferecendo holocausto. Foi
o povo que levou a Fé verdadeira e que do seu leito saiu o Salvador de todo o
gênero humano. Na tenda de Sem habitava a Fé verdadeira.
Por seu lado quem foi o povo
de Jafeth? Diz-nos Flávio Josefo no seu livro História dos Judeus:
Cap. 6, 18. Gênesis 10.
Posição 448 do Kindle
“Os filhos dos filhos de Noé,
para honrar-lhe a memória, deram os próprios nomes aos países onde se
estabeleceram (...) Javã deu o nome à Jônia e toda a nação dos gregos.”
Ora, o famoso historiador
judeu do início do cristianismo aponta uma origem comum do povo grego com o
povo hebreu. Eles seriam, digamos assim, primos. Há ainda diversas evidências
que ligam a origem comum desses povos, como exemplo a semelhança do alfabeto
semítico com o alfabeto grego, que daria um artigo mais especializado, o que
não é de interesse aos limites aqui traçados.
Fato é que a informação de que
a geração de Jafeth chega nos gregos nos interessa e nos parece muito
proposital, muito conveniente e totalmente acorde com a profecia proferia pelo
seu avô comum, Noé.
Se o povo de Sem foi a nação
da Fé verdadeira, não precisa de muito latim para afirmar que o povo de Jafeth
foi o povo que ergueu a razão a um patamar quase que milagroso: não foram os
gregos os pais da filosofia?
Aqui parece que a bênção de
Noé determinou o benefício divino e a explicação espiritual de os gregos
chegarem de forma espetacular tão longe no conhecimento da filosofia. Há
filósofo moderno, cujo nome não quero lembrar, que afirma que a filosofia atual
nada mais é do que notas de rodapé escritas por Platão. E o que falar de
Aristóteles? Poderia haver progresso científico sem as bases da filosofia
grega? Poderia haver a pujança do mundo ocidental sem a filosofia de Sócrates?
Para progredir no conhecimento
da verdade o homem se vale dos recursos da filosofia. Vale lembrar o ponto 3 da
encíclica Fides et Ratio de São João
Paulo II:
De entre os recursos que o homem se vale
sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a
questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das
tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a
etimologia grega, « amor à sabedoria ». Efectivamente a filosofia nasceu e
começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o
porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que
o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o
porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas,
que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a
complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
Esse apelo racional em busca
da verdade nasceu no seio do povo de Jafeth. Já a Verdade feito carne (Verbo caro factum est) nasceu de uma
mulher semita, a mais perfeita das criaturas de Deus. Faltava o esforço
racional se encontrar com a Verdade mesma, tão cheia de misericórdia e amor
pelos homens. Aquela mesma verdade que faz o fardo ser leve e suportável, que é
proporcional ao homem.
E Noé perdeu a razão e foi visto
nu pelo seu próprio filho, que apontava sua nudez. Assim também os nossos
primeiros pais precisaram se cobrir, quando perderam a razão e comeram do fruto
proibido. O próprio Deus, em sua misericórdia, cobriu a nudez de Adão e Eva,
envergonhados na embriaguez do pecado.
Quando Noé estava maculado
pela indignidade da nudez, tocado pelo inebriar, Sem e Jafeth cobriram sua
nudez. A Fé (Sem) e a Razão (Jafeth) redimiram de seu estado.
Noé disse que Jafeth iria
habitar nas tendas de Sem. Logo, é de concluir que a razão deve habitar na
tenda da Fé, que a razão deve ser dócil à fé, como diziam os antigos: philosophia ancila teologiae. Não a
razão elevada ao altar de Deus, não a destruição da razão, como querem os
gnósticos, para dela fazer estranha à casa de Sem. Mas a razão que serve à
teologia, que está aquém da teologia, mas que não se aparta e nem dela fica
contrária.
Aqui também podemos avançar e
analisar até mesmo a relação do poder civil, fundado na razão natural do
direito, e do poder eclesiástico, fundado na Fé. Sendo um inferior ao outro, um
em serviço dócil ao outro, em uma unidade irmanada para reconhecer Deus como
seu único Senhor e dar ao homem sua dignidade na história.
Belíssimo início da encíclica
já comentada: A fé e a razão (fides
et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se
eleva para a contemplação da verdade.
Que a razão, a filosofia, a
vera filosofia, habite as tendas da fé para os que são chamados, tanto judeus como gregos, reconheçam a
sabedoria de Deus. 1 Coríntios 1:24
Antonio Manuel
À luz do texto acima, as considerações
de Marcelo Andrade.
Esta passagem bíblica é de uma
riqueza ímpar e permite longa meditação.
Vemos na passagem, a tríade:
caridade, justiça e sabedoria.
Noé tomou o vinho (que representa,
segundo S. Tomás, a caridade, justiça e sabedoria) que inebria, símbolo da
caridade (virtude teologal), Jafeth simboliza a justiça (virtude cardeal) e
Sem, a sabedoria (dom do Espírito Santo), estas servem à caridade, a maior
virtude, ou seja, temos de usar a razão e a fé para fazer caridade. Curioso que
a razão e a fé descortinam os mistérios do mundo e Sem e Jafeth cortinaram
o pai.
Ora, a nudez relaciona-se com o 6º
mandamento; e Sem e Jafeth ao ficarem de costas para ela, simbolizaram a
castidade, agiram ao contrário da mulher de Lot. Ou seja, aqueles que guardarem
os olhos serão puros e verão a Deus e serão justos e sábios.
Fala-se de “tendas”, ora, a tenda tem
a característica de mudar de lugar para lugar, o que pode simbolizar o
apostolado.
Lembrando que Noé não teve culpa
nenhuma da sua embriaguez, mas mesmo assim a cena teve um ar ridículo por causa
de Cam, ou seja, todos nós ao servimos a Deus podemos ser motivos de riso para
o mundo, mas só para o mundo, porque Deus há de nos recompensar por isso. Davi
também teve o seu momento ridículo numa certa ocasião. Por fim a tenda e a capa
remetem a ideia de proteção, ora nós temos de guardar a fé íntegra e
inviolada.
Cam habitou a África o continente dos
escravos. Jafeth foram os europeus convertidos para a verdadeira fé (tenda de
Sem).
Cam simboliza o
pecado e por isso foi escravo, porque quem peca é escravo de seus vícios.
Recife, 15 de setembro de 2017.