Na
falta de uma agenda parlamentar mais consistente, o partido de “oposição à
esquerda”, cujo nome já se perde na contradição de expressões que lhe deram,
resolveu ficar na oposição da democracia: ingressou com uma ação constitucional
(ADPF 442) com o fim de atropelar o natural e insubstituível debate legislativo
sobre o aborto por meio de uma resposta jurisdicional do STF, o qual, no frigir
dos ovos, se verá, mais uma vez, tentado a prodigalizar outra aula de ativismo
judicial.
Explico.
Esse partido, que porta a única dimensão existencial em que o socialismo rima
com a liberdade, pleiteia a descriminalização do aborto até a 12ª semana de
gestação do feto, hipótese não contemplada pelos dois incisos do artigo 128 do
Código Penal. Em outras palavras, o partido pretende, por meio do exercício do
direito à jurisdição, cujo véu, diáfano, permite vislumbrar o autoritarismo da
atitude, que as onze cabeças iluminadas de nossa Suprema Corte, ao fim, acabem
por legislar no lugar dos 513 deputados e 81 senadores que foram eleitos para
isso.
A
ADPF 442, um verdadeiro e próprio panfleto abortista, estampa, em sua inicial,
aquele monólogo, cujos argumentos, no limite, dada a inconsistência
lógico-teórica invencível, mais lembram a arte de esgrimir a parede. Ei-los:
retórica utilitária (“o futuro mutilado de adolescentes grávidas ou de mulheres
abandonadas já com muitos filhos”), criminal (“só se punem as mulheres
pobres”), sanitária (“abortos clandestinos matam muitas gestantes”), feminista
(“sou dona do meu corpo”) ou eugênica (“sofre disso ou daquilo e não tem
viabilidade existencial”).
Não
se pretende dissecar todas essas linhas retóricas. Apenas uma delas, a mais
sofisticada, a premissa retórica escrita na petição inicial, de que “seres
humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas
intraútero”. Quer dizer que, até o dia em que eu nasci, eu fui um amontoado
celular, com uma vida manipulável ao sabor dos interesses alheios. Quando minha
cabeça passou pelo ventre de minha mãe, num passe de mágica, eu virei pessoa e,
a partir de então, minha vida passou a ser tutelada pela lei e pelo ente
estatal. Ou, dito de outra forma, segundo o autor da ação, eu não precisaria
esperar pelas 40 semanas para me tornar pessoa: a partir da 13ª, eu já poderia
respirar aliviado.
Independentemente
do suporte biológico que sustenta a tese da 12ª semana, que, no fundo, é uma
desculpa científica que porta uma visão eugenista da vida, essa mesma tese
parte de um pressuposto bem claro: uma espécie de reconhecimento do outro, como
pessoa, baseado somente na projeção de uma identidade, quando o feto deixaria
de ser feto e passaria a se chamar Elena ou Letizia.
O
problema é que essa “validade onomástica” tornaria o direito à vida uma
faculdade e não um dever. Privatiza-se a noção de vida humana. Para mim, é
Sofia; para ele, é uma parte do corpo; para ela, um “ente” a ser validado por
uma relação de identidade e, para os partidários da “liberdade socialista”,
“simples criaturas humanas intraútero”.
Nietzsche
recordava-nos de que “na história da sociedade, há um ponto de fadiga e
enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica e o
faz a sério e honestamente”. É o caso da ADPF 442, um verdadeiro aborto processual,
porque pretende inovar na ordem jurídica brasileira, ao arrepio do diálogo
legislativo nas duas câmaras parlamentares, e fazer da pauta abortista – a
pauta da cultura da morte – uma espécie de destino inexorável de nossa
sociedade.
Corrijo:
não precisamos falar de aborto. Precisamos falar de feto. O feto é apenas o que
fomos antes da nossa configuração presente. O feto será uma criança, um
adolescente ou um adulto se não existir nenhum obstáculo terminal pelo caminho.
A questão fundamental está em saber que direito tem um partido de ser esse
obstáculo. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes, Ph.D., é professor-pesquisador, membro
da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça. Publicado no Correio popular em 20/06/2018