16 maio, 2020

MONSENHOR LEFEBVRE



OBS.: Esse texto chegou ao nosso conhecimento através de um antigo jornal que circulou em Madrid, chamado ABC, e que foi fundado em 1905. Dele não temos conhecimento e não nos interessou aprofundar. Por seu turno, o artigo foi escrito por Leopoldo Palacios, professor de direito, envolvido com conservadores da ação católica. O blog não se alinha a católicos conservadores, que por si, tem mentalidade liberal. No entanto, o artigo é interessante porque lança luz na importante figura de D. Lefebvre.



A posição que sustenta Marcel Lefebvre poderia ser qualificada de catolicismo puro, em contraposição a outro catolicismo que aceita ingredientes estranhos e que já não é puro, mas mesclado de liberalismo: o chamado catolicismo liberal. Para o conceito de catolicismo puro me remeto ao livro clássico de Karl Adam: “A essência do catolicismo”. Para o conceito de catolicismo liberal recordo a “História do catolicismo liberal”, de Emmanuel Barbier, em cinco volumes. O que se entende por catolicismo liberal é um movimento que aspira conciliar a Igreja e a Revolução (com maiúscula), harmonização que ocorreria a cargo dos que vivem dentro da cidadela eclesiástica. Nem todos tem visto este movimento com simpatia. Seus homens pretendiam dar uma visão favorável aos princípios revolucionários opostos ao catolicismo, e trabalharam dentro da Igreja aspirando planos de poder, ganhar adeptos entre o clero, captar a boa vontade do episcopado e eleger um papa ao seu gosto, que, convocado um concílio, impusera a todos os fiéis, mercê ao firme aparato de disciplina da Igreja, a nova concepção religiosa, coroando com a cruz de Cristo o gorro frígio da Revolução.

Terminado o Concílio, o seguimento das ideias triunfadoras desconcertou a vida da Igreja de Cristo. Eram ideias diferentes das que haviam imperado até então, sobretudo no mais característico da nova concepção: sua maneira de ver o mundo e a modernidade. Desde a Revolução francesa, os grandes pontífices – Pio VI, Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, São Pio X, Pio XII – haviam ensinado sobre o mundo moderno o contrário do que se ensina agora. Mas não por isso variava o tom de autoridade desses ensinamentos, nem se evitava perturbar sacerdotes e fiéis, como se viu na imposição despótica das reformas litúrgicas. Não causa surpresa que o descontentamento se espalhou por todo lugar e que surgiram movimentos de resistência católica. Um deles – não o único – é o representado pelo bispo Lefebvre, fundador do Seminário Internacional de Ecône (Suíça) e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X.

Há pessoas que só podem viver apoiadas moralmente por um chefe espiritual: se elas são católicas, este chefe é o Papa. Todavia, cabe a possibilidade, já estudada por teólogos, de que este chefe perca a confiança de seus fiéis, por não os defender dos inimigos da Igreja ou por favorecer dentro dela um partido unilateral. Que então fará o católico alheio a dito partido? Ele não tem outra posição mais digna que a de Lefebvre, a qual se alinha em perfeita comunhão com o Papa, mas somente quando o Papa segue em união com seus predecessores e transmite o depósito da fé. Lefebvre também aceita as novidades intimamente conformes à tradição e à fé, mas não se sente vinculado pela obediência a novidades que vão de encontro à tradição e que ameacem à fé. No que toca ao Concílio, quando o perguntam se não é um concílio como os demais, responde: “Por sua ecumenicidade e sua convocatória, sim; por seu objeto, e isto é o essencial, não. Um concílio que não é dogmático pode não ser infalível; é apenas na medida em que repete verdades dogmáticas tradicionais”.


            Lefebvre adverte que os três princípios da Revolução: Liberdade, Igualdade, Fraternidade obteve recente entrada na Igreja. A Liberdade, com a suplantação da tolerância pela liberdade religiosa que outorga os mesmos direitos à verdade e ao erro. A Igualdade, com a prática da colegialidade, que debita a autoridade do bispo em cada diocese e a do Romano Pontífice em toda Igreja, subordinando direitos de origem divina à decisão das assembleias puramente humanas, reunidas para discutir e votar, e nas quais triunfam a autoridade do número. A Fraternidade, com a ideia do ecumenismo, que para agradar aos “irmãos separados” elaborou reformas litúrgicas de marcado sabor protestante, que não uniu os cristãos e desuniu os católicos. Com nenhuma dessas três coisas transige monsenhor Lefebvre, porque aparentemente a Igreja conciliar não fez uso acertado nem da liberdade, nem da igualdade, nem da fraternidade. E onde se traduz melhor esta intransigência é na celebração da missa. Rechaça as variações introduzidas na cerimônia pelo novo rito de Paulo VI, e celebra, castiçamente, voltado para Deus e em latim, segundo o rito imemorial que São Pio V legalizou para sempre.

É explicável que os prelados que simpatizam com as “ideias modernas”, como as chama Nietzsche, obedeçam às novas orientações pós-conciliares: é sua inclinação e seu gosto. Mas que também façam o mesmo os prelados conservadores já não é tão fácil de explicar. Na religião, a obediência à autoridade pode se converter em “obediência indiscreta” quando põe em perigo a superveniência da fé divina tradicional dos fiéis. Agora bem, esta fé católica tradicional está hoje muito debilitada pela atmosfera enervante do novo clima vaticano, que se reflete na catequese, nos seminários, na liturgia da missa e dos sacramentos, na noção do sacerdócio e até na constituição da Igreja. Por isso tantos olhos se voltaram até monsenhor Lefebvre, o fundador da do Seminário Internacional de Ecône, que oferece resposta a um gravíssimo problema “Porque o problema de Ecône – afirmava uma vez Lefebvre – é o problema de milhares e milhões de consciências cristãs desarrazoadas, divididas, transtornadas por este dilema martirizante: ou desobedecer arriscando-se perder a fé; ou obedecer e colaborar com a destruição da Igreja; ou desobedecer e trabalhar pela preservação da Igreja; ou aceitar a Igreja reformada e liberal ou manter sua pertinência à Igreja católica.  Por isso, quando em 29 de agosto de 1976 monsenhor Lefebvre, dando testemunho de uma fortaleza singular que depois o assistiu sempre, celebrou contra ventos e mares a histórica missa de Lille, acalentou os corações de milhares de católicos, que encontraram por fim um pastor que entendia seus problemas espirituais.

Este grande galo que é o monsenhor Lefebvre, filho da França, a primogênita da Igreja, é um “gallus” no sentido cabal do termo, que em latim significa, ao par, gálico e galo. Vemo-nos como um galo valoroso a quem eles deram a crista; e o ouvimos falar da separação da luz e das trevas que hoje se mesclam no catolicismo pós-conciliar como ouvimos o galo quando canta limpidamente essa dissociação da luz e trevas que é o amanhecer.

Leopoldo-Eulogio PALACIOS.