A
posição que sustenta Marcel Lefebvre poderia ser qualificada de catolicismo
puro, em contraposição a outro catolicismo que aceita ingredientes estranhos e
que já não é puro, mas mesclado de liberalismo: o chamado catolicismo liberal. Para
o conceito de catolicismo puro me remeto ao livro clássico de Karl Adam: “A
essência do catolicismo”. Para o conceito de catolicismo liberal recordo a
“História do catolicismo liberal”, de Emmanuel Barbier, em cinco volumes. O que
se entende por catolicismo liberal é um movimento que aspira conciliar a Igreja
e a Revolução (com maiúscula), harmonização que ocorreria a cargo dos que vivem
dentro da cidadela eclesiástica. Nem todos tem visto este movimento com
simpatia. Seus homens pretendiam dar uma visão favorável aos princípios
revolucionários opostos ao catolicismo, e trabalharam dentro da Igreja
aspirando planos de poder, ganhar adeptos entre o clero, captar a boa vontade
do episcopado e eleger um papa ao seu gosto, que, convocado um concílio,
impusera a todos os fiéis, mercê ao firme aparato de disciplina da Igreja, a
nova concepção religiosa, coroando com a cruz de Cristo o gorro frígio da
Revolução.
Terminado
o Concílio, o seguimento das ideias triunfadoras desconcertou a vida da Igreja
de Cristo. Eram ideias diferentes das que haviam imperado até então, sobretudo
no mais característico da nova concepção: sua maneira de ver o mundo e a
modernidade. Desde a Revolução francesa, os grandes pontífices – Pio VI,
Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, São Pio X, Pio XII – haviam ensinado sobre o
mundo moderno o contrário do que se ensina agora. Mas não por isso variava o
tom de autoridade desses ensinamentos, nem se evitava perturbar sacerdotes e
fiéis, como se viu na imposição despótica das reformas litúrgicas. Não causa
surpresa que o descontentamento se espalhou por todo lugar e que surgiram
movimentos de resistência católica. Um deles – não o único – é o representado
pelo bispo Lefebvre, fundador do Seminário Internacional de Ecône (Suíça) e da
Fraternidade Sacerdotal São Pio X.
Há
pessoas que só podem viver apoiadas moralmente por um chefe espiritual: se elas
são católicas, este chefe é o Papa. Todavia, cabe a possibilidade, já estudada
por teólogos, de que este chefe perca a confiança de seus fiéis, por não os
defender dos inimigos da Igreja ou por favorecer dentro dela um partido
unilateral. Que então fará o católico alheio a dito partido? Ele não tem outra
posição mais digna que a de Lefebvre, a qual se alinha em perfeita comunhão com
o Papa, mas somente quando o Papa segue em união com seus predecessores e
transmite o depósito da fé. Lefebvre também aceita as novidades intimamente
conformes à tradição e à fé, mas não se sente vinculado pela obediência a
novidades que vão de encontro à tradição e que ameacem à fé. No que toca ao
Concílio, quando o perguntam se não é um concílio como os demais, responde:
“Por sua ecumenicidade e sua convocatória, sim; por seu objeto, e isto é o
essencial, não. Um concílio que não é dogmático pode não ser infalível; é
apenas na medida em que repete verdades dogmáticas tradicionais”.
Lefebvre adverte que os três
princípios da Revolução: Liberdade, Igualdade, Fraternidade obteve recente
entrada na Igreja. A Liberdade, com a suplantação da tolerância pela liberdade
religiosa que outorga os mesmos direitos à verdade e ao erro. A Igualdade, com
a prática da colegialidade, que debita a autoridade do bispo em cada diocese e
a do Romano Pontífice em toda Igreja, subordinando direitos de origem divina à
decisão das assembleias puramente humanas, reunidas para discutir e votar, e
nas quais triunfam a autoridade do número. A Fraternidade, com a ideia do
ecumenismo, que para agradar aos “irmãos separados” elaborou reformas
litúrgicas de marcado sabor protestante, que não uniu os cristãos e desuniu os
católicos. Com nenhuma dessas três coisas transige monsenhor Lefebvre, porque
aparentemente a Igreja conciliar não fez uso acertado nem da liberdade, nem da
igualdade, nem da fraternidade. E onde se traduz melhor esta intransigência é
na celebração da missa. Rechaça as variações introduzidas na cerimônia pelo
novo rito de Paulo VI, e celebra, castiçamente, voltado para Deus e em latim,
segundo o rito imemorial que São Pio V legalizou para sempre.
É
explicável que os prelados que simpatizam com as “ideias modernas”, como as
chama Nietzsche, obedeçam às novas orientações pós-conciliares: é sua
inclinação e seu gosto. Mas que também façam o mesmo os prelados conservadores
já não é tão fácil de explicar. Na religião, a obediência à autoridade pode se
converter em “obediência indiscreta” quando põe em perigo a superveniência da
fé divina tradicional dos fiéis. Agora bem, esta fé católica tradicional está
hoje muito debilitada pela atmosfera enervante do novo clima vaticano, que se
reflete na catequese, nos seminários, na liturgia da missa e dos sacramentos,
na noção do sacerdócio e até na constituição da Igreja. Por isso tantos olhos
se voltaram até monsenhor Lefebvre, o fundador da do Seminário Internacional de
Ecône, que oferece resposta a um gravíssimo problema “Porque o problema de
Ecône – afirmava uma vez Lefebvre – é o problema de milhares e milhões de
consciências cristãs desarrazoadas, divididas, transtornadas por este dilema
martirizante: ou desobedecer arriscando-se perder a fé; ou obedecer e colaborar
com a destruição da Igreja; ou desobedecer e trabalhar pela preservação da
Igreja; ou aceitar a Igreja reformada e liberal ou manter sua pertinência à
Igreja católica. Por isso, quando em 29
de agosto de 1976 monsenhor Lefebvre, dando testemunho de uma fortaleza
singular que depois o assistiu sempre, celebrou contra ventos e mares a
histórica missa de Lille, acalentou os corações de milhares de católicos, que
encontraram por fim um pastor que entendia seus problemas espirituais.
Este
grande galo que é o monsenhor Lefebvre, filho da França, a primogênita da
Igreja, é um “gallus” no sentido cabal do termo, que em latim significa,
ao par, gálico e galo. Vemo-nos como um galo valoroso a quem eles deram a
crista; e o ouvimos falar da separação da luz e das trevas que hoje se mesclam
no catolicismo pós-conciliar como ouvimos o galo quando canta limpidamente essa
dissociação da luz e trevas que é o amanhecer.
Leopoldo-Eulogio PALACIOS.