Um evento histórico: a crítica do Vaticano II por Monsenhor Viganò
Carta-aberta do Padre Claude Barthe [1]
Tomo a liberdade de reagir à declaração de Vossa Excelência, “Sobre o Vaticano II e suas conseqüências” (Chiesa e post concilio, 9 de junho de 2020), para sublinhar, modestamente, a importância desta declaração para a Igreja.
Que me seja permitido resumi-la em cinco pontos:
1 – O Vaticano II contem textos “em oposição direta à doutrina até então expressa no Magistério”
Vosso ataque ao Vaticano II visa:
- Aquilo o que está em desacordo direto com a doutrina anterior, como a liberdade religiosa da declaração Dignitatis humanæ e os fundamentos, presente nas declaração Nostra ætate sobre as novas relações com as religiões não-cristãs; ao que poderíamos ainda acrescentar o decreto sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio, que introduziu a inovação da “comunhão imperfeita” que teriam aqueles que estão separados do Cristo e da Igreja;
- Além de ambigüidades que podem ser utilizadas no sentido tanto da verdade quando do erro, como o subsistit in do n. 8 da Constituição Lumen gentium: “A Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica”, em lugar de: “A Igreja de Cristo é a Igreja Católica”.
2 – Tais distorções doutrinas são a origem dos erros que se seguiram – de que o “espírito do Concílio” é a prova
Vossa Excelência explica que os desvios ou elementos muito prejudiciais para a fé cristã, que marcaram o período pós-conciliar (como a Declaração de Abou Dhabi, mas também as jornadas de Assis, a reforma litúrgica, a prática da colegialidade), encontram sua origem nestas distorções.
Além disso, ressalta de vosso texto que o conceito “espírito do Concílio” confirma a especificidade inovadora dessa assembléia, “pois nunca houve um ‘espírito do Concílio de Nicéia’, nem ‘espírito do Concílio de Ferrara-Florença’ e muito menos um ‘espírito do Concílio de Trento’, assim como nunca houve um ‘pós-concílio’ depois do Latrão IV ou do Vaticano I”.
3 – Tais distorções não podem ser corrigidas
As tentativas visando corrigir os excessos do Concílio Vaticano II, escreveis, foram impotentes:
- A) Ou porque enveredou-se pela via insuficiente da “hermenêutica da continuidade”. Com efeito, isso é tanto mais inviável quando essa hermenêutica é tanto menos um retorno ao magistério anterior, mas representa a busca de uma terceira via entre inovação e tradição. Bento XVI, em seu discurso à Cúria Romana de 22 de Dezembro de 2005, defendia uma “hermenêutica da renovação na continuidade” contra a “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”. Mas essa última, porém, diz respeito tanto aos ‘tradicionalistas’ quanto aos ‘progressistas’, pois uns e outros consideram que o Vaticano II operou algumas rupturas.
- B) Ou porque incitou-se o Magistério a “corrigir” os erros do Vaticano II. Justamente vós mostrais que este projeto, “mesmo com a melhor das intenções, mina as fundações do edifício católico”: com efeito, opor o magistério de amanhã ao de hoje, que contradisse o de ontem, levaria ao fato de que nenhum ato do Magistério jamais seria definitivo.
Assim, num complemento de 15 de junho (Chiesa e post concilo), Vopssa Excelência sustenta a opinião de que um Papa no futuro “poderia anular todo o Concílio”.
Se me é permitido ampliar a vossa análise, diria que a única solução para contradizer por um ato do Magistério um ato precedente é constatar que o ato em questão não é magisterial na plena força do termo. Por exemplo, Pastor Aeternus, do Concílio Vaticano I, em 1870, anulou de facto o decreto Frequens, do Concílio de Constança, em 1417, que pretendia institucionalizar a superioridade do Concílio sobre o Papa. Essa anulação foi possível porque a Santa Sé nunca reconheceu o valor dogmático de Frequens. Do mesmo modo, com o Vaticano II, encontramo-nos num cenário como o de Frequens, uma vez que os órgãos do próprio Concílio Vaticano II (Dz 4351) e toda a interpretação posterior assegura que este Concílio foi de natureza simplesmente “pastoral”, isto é, não dogmática. De fato, o grande meio para sair da presente crise do Magistério é deixar aquilo a que se chama “pastoral” para trás, e entrarmos de novo no dogmático: que o Papa sozinho ou o Papa e os Bispos unidos a ele se expressem magisterialmente e não mais “pastoralmente”.
4 – O presente pontificado é um esclarecimento paradoxal
Vossa Excelência escreve: “Aquilo que, desde há anos, ouvimos enunciado, vagamente e sem clareza, da mais alta Cátedra, encontramo-lo depois elaborado num verdadeiro e propriamente dito manifesto dos partidários do presente pontificado”.
Era o que muitos sentem quando tentam dar uma pia interpretatio (n.t.: interpretação piedosa) dos textos controversos do Vaticano II: eles dizem que (n.t.: a doutrina claramente heterodoxa professada a partir dum magistério ambíguo e sem clareza) não é possível, pois que a aplicação (n.t.: ortodoxa dos textos conciliares), de certo modo autêntica, é feita hoje em dia. Os textos deste pontificado são uma conclusão dos pontos litigiosos do Concílio, como por exemplo o reconhecimento errôneo dos direitos da consciência na Exortação Amoris lætitia, cujo n. 301 declara que em certas circunstâncias o adultério não é pecado.
5 – Um dever de consciência pesa sobre os prelados da Igreja, quais tenham consciência dessa situação
Falando de si mesmo, dizeis: “Eu mesmo, com honestidade e serenidade, obedeci, ao longo de sessenta anos, a ordens questionáveis, acreditando que representassem a voz amorosa da Igreja; e hoje, com igual serenidade e honestidade, reconheço que me deixei enganar”.
Numerosos prelados, notadamente desde as últimas assembleias do Sínodo, são conduzidos a recuar diante das conseqüências atuais das causas que remontam a meio século. Vosso exemplo e encorajamentos podem ajudá-los a expressar, com consciência, e para o bem da Igreja, seus desacordos com estas causas: os pontos defeituosos do Vaticano II.
[1] Pe. Claude Barthe é autor de Trouvera-t-il encore la foi sur la terre ? Une crise de l’Église, histoire et questions (François-Xavier de Guibert, 2006, 3a edição); La Messe de Vatican II. Dossier historique (Via Romana, 2018).