18 maio, 2021

Do Campo de São Domingos à Praça Tiradentes

No século XVII, a cidade do Rio de Janeiro ficava entre o oceano e a vala, que ligava a Lagoa da Carioca ao mar. Além, havia um campo, onde se soltava a pastar o gado leiteiro. No século XVIII, ali foi erguida a Igreja de São Domingos, hoje desaparecida, passando o lugar a chamar-se Campo de São Domingos, do qual o Rossio foi desmembrado em 1721.

Em 1821, em consequência da revolução liberal que rebentara no Porto no ano anterior, foi D. João VI obrigado a jurar a constituição que estava sendo elaborada  pelas Cortes em Lisboa, o que se deu no Teatro de São João, então localizado no Rossio, que passou a chamar-se Praça da Constituição, a portuguesa, antes da brasileira, outorgada por D. Pedro I após a Independência, em 25 de março de 1824.

Em 1862, foi inaugurada no centro da praça a estátua equestre de D. Pedro I, que ali permanece, embora republicanos exaltados a quisessem demolir, na tentativa de apagar a história.

Por equívoco, na suposição de que ali se dera a execução de Tiradentes, em 1890 o logradouro foi denominado Praça Tiradentes, que conserva até hoje.

II

No final do século XVIII, na Capitania de Minas Gerais, ocorrera o movimento político da Inconfidência ,  de caráter romântico, que procurava imitar a revolução americana, para tornar o Brasil
independente de Portugal.  Nunca passou de mera conspiração da elite local, ligada à maçonaria e inconformada com a “derrama do ouro”, pela qual um quinto do metal extraído na mineração devia ser passado à Coroa.  Os conspiradores jamais conseguiram organizar-se para chegar ao desiderato. Nem financiamento, nem armas, nem apoio nas demais províncias ou no estrangeiro foram assegurados para que sequer se iniciasse a revolta.

A cúpula do movimento era formada pelo Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, pelo advogado Cláudio Manoel da Costa, pelos coronéis Inácio José de Alvarenga Peixoto e Francisco de Oliveira Lopes, e pelos padres Carlos Correia de Toledo e José da Silva de Oliveira Rolim. O alferes (segundo-tenente) Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, era figura menor, que serviria de bode expiatório aos maiorais.

O coronel Joaquim Silvério dos Reis, que aderira à conspiração, veio a delatar os companheiros ao governador da capitania, o Visconde de Barbacena, para redimir-se do crime de lesa-majestade, na primeira delação premiada no Brasil, que rendeu ao delator não só o perdão como também régia recompensa.

Com exceção de Cláudio Manoel da Costa, que se suicidara, os inconfidentes foram presos e confinados na fortaleza da Ilha das Cobras, na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Ao final do processo, os presos foram levados à cadeia velha para ouvir a sentença, tendo sido condenados à morte na forca, com o confisco dos seus bens. A rainha D. Maria I veio a comutar a pena de morte por degredo para toda a vida, com exceção de Tiradentes, reputado “cabeça” da conspiração.

Da cadeia velha partiu a procissão judiciária, que passou pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, até o Largo da Lampadosa, onde se deu a execução, por morte na forca. O corpo foi transportado por inteiro em uma carreta à Casa do Trem, na Freguesia da Misericórdia, onde se procedeu ao esquartejamento, salgadura e acondicionamento em surrões, para o transporte aos lugares em que foram expostas  as partes, até que o tempo as consumisse. Não se deu o desmembramento no patíbulo, sendo falsa a imagem do quadro de Pedro Américo, realizado em 1893, para adular o novo regime, em exposição no Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora.

III

Proclamada a República, o novo regime precisava de símbolos para afirmar-se ante o povo, que assistiu bestificado ao golpe militar que o inaugurara. Para substituir a figura de D. Pedro I, autor da Independência, foi inventado um herói para o novo regime, com o resgate de Tiradentes do esquecimento a que fora relegado. Como não se guardara a sua imagem, deram-lhe nada menos que a de Jesus Cristo, erigindo-se a data da execução em feriado nacional.

A cadeia velha foi demolida, em seu lugar tendo sido erguido o Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados até a mudança para Brasília. Em frente, fica o monumento em sua homenagem, pois ali ficou preso desde a leitura da sentença até a execução. Em 1930, a Igreja da Lampadosa foi demolida, em seu lugar outra tendo sido erguida em estilo neocolonial. A Casa do Trem foi anexada ao Arsenal de Guerra, cujo prédio é ocupado desde 1922 pelo Museu Histórico Nacional. A lagoa da Carioca foi aterrada, sendo hoje o largo do mesmo nome. Sobre a vala fica a R. Uruguaiana.

Com o tempo, Tiradentes tornou-se o santo profano da República, objeto de culto cívico promovido pelas autoridades, sem a participação do povo, que aproveita o feriado para descansar.


Paulo Eduardo Razuk

 

Fontes:


Vivaldo Coaracy, Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, Rio, 1955.

Brasil Gerson, História das Ruas do Rio, 5ª edição, Lacerda Editores, Rio, 2000.

Lucas Figueiredo, O Tiradentes, Companhia das Letras, S. Paulo, 2018.

Paulo Eduardo Razuk, A Primeira Delação Premiada no Brasil, Migalhas, 8 de fevereiro de 2019.