Peço licença ao poeta Castro
Alves e pego do Navio Negreiro essa passagem paradoxal: o riso de Satanás. O
anjo caído, no entanto, não ri, porque o riso é próprio de uma verdade
compreendida pela inteligência. O demônio não ri desde sua queda, apenas dor, desespero
e ranger de dentes. Não se rir no inferno... Claro que o poeta se utilizou de
uma figura de linguagem para mostrar a satisfação diabólica diante da cena
tétrica do navio negreiro: Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor
Deus! Se é loucura... se é verdade/Tanto horror perante os céus?!
Qual
num sonho dantesco as sombras voam, parece que o demônio está mais solto do
que nunca, nesse mar revolto da história, nesses tempos de pandemia e tantos
abusos do direito e da justiça, tantas notícias que trazem a glória da infâmia
à ordem do dia. As sombras pesadas voam e estendem seu manto atingindo todos os
aspectos da vida, atingindo qualquer marca de sacralidade. Nesse mar revolto
encontra-se a barca de Pedro, conduzida por um papa, governada por bispos, que
estranhamente, em um processo destrutivo, vem apressadamente detonando tudo
aquilo que se conheceu como depósito da Fé católica.
A perda da noção de sacrifício da missa nos conduziu a uma concepção de mundo protestante. O mundo moderno, como reação à ordem intelectual da idade média, da idade católica por excelência, tem na sua base o non serviam luterano. Se hoje existe a revolução comunista, ela é tributária das ideias do monge revoltado. Dessa forma, com o Concílio Vaticano II, em um processo de autodemolição, a igreja foi introduzida na forma mentis protestante. Todos nós católicos que fomos educados e catequizados na igreja pós concílio Vaticano II, somos liberais, não temos a formação católica inteira. Não existe mais a cidade católica, o que existe são sombras do que foi, aqui e ali, na permanência de certas devoções e certos usos que se mantiveram, e a destruição passou pelo espaço físico e foi avançando para as mentes e corações, ou seja, todos somos de alguma forma, revolucionários no cerne de nossa alma. É muito difícil arrancar isso.
Fico
a imaginar um santo como São João Bosco visitando uma das escolas Salesianas de
hoje, assistindo a uma missa de algum padre salesiano. Pego o exemplo aleatório
de São João Bosco, mas poderia ser qualquer outro santo do passado; ele
certamente não iria reconhecer a religião vivida por ele na religião que se
apresentaria nesses novos tempos de revolução constante. É outra Igreja, é
outro rito, é outra Fé, são outras pessoas. O véu cedeu à calça jeans; o
sapato, ao tênis; a formalidade, à irreverência constante; o riso cedeu à
gargalhada; o silêncio, ao som frenético da bateria. A missa nova tem no seu
cerne o conduto da revolução, basta lembrar daquela música que captou bem a
mensagem, música que era cantada por senhoras
nos corais por aí a fora, e não por um jacobino tupiniquim: Igualdade, fraternidade, nesta mesa nos ensinais As lições que melhor
educam, na Eucaristia é que nos dais!
É isso mesmo, é a mesa da
revolução, não é mais o altar do Pão dos Anjos, mas Eucaristia se transmuta em
semente da mudança, é o instrumento da igualdade, como quis Antero de Quental,
no seu poema, no Templo:
O
Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:
Justiça,
é esse o tema imenso do sermão:
A
missa nova, essa é missa de Liberdade
E
órgão a acompanhar...a voz da Revolução!
A cupidez pelas coisas novas,
trouxe a missa nova e, como bem percebido pelo Papa Francisco, não tem como a
missa antiga conviver com a atualmente fabricada. São duas religiões diferentes:
uma, a missa do altar e do sacrifício; outra, a missa da liberdade, da
igualdade e da fraternidade, da destruição do altar, da mesa da comunhão, do órgão
a acompanhar a voz da revolução. Essa voz da revolução chegou ao cume da Igreja
e fala através do papa Francisco.
Tudo isso para dizer do paradoxal
documento Traditiones Custodes, paradoxal como o riso de satanás. Este
documento não tem conexão com a tradição e muito menos com a guarda da tradição,
é antes de tudo, um tiro sem a alegria do amor, em um segmento que insiste em
rezar de um modo antigo e em atender a uma missa que que reside na
história bimilenar da Igreja.
É cediço que boa parte da
história da Igreja foi perpassada com o rito romano antigo, apenas para
ser didático. Quantos santos, quanta tempestade em torno da missa? Nesse ponto,
nunca é demais lembrar a lição dada pelo professor Orlando Fedeli, que consta
no livro A Religião do Concílio Vaticano II, publicado pela Flos Carmeli: “ a
ciência que mais desperta interesse, no sentido de ser a mais atraente, é a
História, porque só nela se encontram Deus, o Mundo e o Eu”. Ora, a missa é um ato
que ocorre na História, no tempo, e atravessa todos os tempos; na missa o próprio
Deus se faz presente e nos alimenta; alimenta nossa alma. O padre, no sermão,
tem na sua matéria esses três interesses: Deus, o mundo e eu. A missa, sendo o
acontecimento central da presença real de Deus na história, por uma consequência,
como ensinada pelo prof. Orlando Fedeli, é o ponto fulcral, o centro da História.
É em torno da missa que se desenvolve o teatro da atuação do homem na história:
seja a favor, seja contra. Nosso Senhor disse: Quem não junta, espalha.
O documento do papa, no dia de
Nossa Senhora do Carmo, tomou um lado claro: contra a missa tridentina. Tanto é
verdade que o seu efeito prático foi começar a extinguir a missa em locais que
outrora estava estabelecida. Apagou-se uma vela aqui, outra vela ali; não se diz
mais: Introibo ad altare Dei, os fiéis ficarão sem missa, o padre ficará
sem dizer missa. O documento disse claramente que o interesse central é na missa
da liberdade e não na missa da caridade. Como não ver o riso de Satanás
nesse acontecimento? Como não enxergar um ponto dramático para a história da Igreja,
para a História mundial? A quem interessa o fim das missas? Outrora essa missa
santificava? Outrora essa missa era a expressão da Fé católica? Não é mais? Não
santifica mais? O que foi que se apagou? Será que essa atitude não foi uma
vitória parcial das forças diabólicas? Sinceramente, tenho a convicção que sim.
O demônio fez a festa em um dia sagrado.
O ponto central da história, a
missa, com todo o seu significado, vai cada vez mais sofrer na sua existência no
meio de nós. Aqui e ali vai sobreviver, porém sempre de uma forma precária;
entramos em uma fase das mais perigosas e todo o barulho e terror que já foram
soltos na história terão agora um reforço chancelado pelo moto próprio papal; talvez
comecemos agora um novo ciclo que vai nos exigir mais oração e penitência. O
reino da morte cada vez mais avança com seus tentáculos.
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus! Seu eu deliro... ou se é verdade, Tanto horror perante
os céus?!...
Antônio Manuel,
12 de agosto de 2021.