17 agosto, 2021

No tempo do “Onça”

 

A expressão “no tempo do Onça” remete a coisas antigas ou fatos ocorridos em tempo remoto. Nem sempre foi assim.

O coronel da arma de infantaria da praça de Chaves, Portugal, Luiz Vahia Monteiro, conhecido como  “o Onça”, foi governador da Capitania do Rio de Janeiro de 1725 a 1732.

Ao tempo do “Onça”, reinava em Portugal D. João V, O Magnânimo, monarca absoluto, cujo reinado foi de 1706 a 1750. Neto de D. João IV, que inaugurara a dinastia de Bragança, era casado com D. Mariana da Áustria, em associação das famílias reais portuguesa e austríaca, feito repetido por D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal, ao casar-se com D. Leopoldina.

As cidades de S. João del Rey e Mariana, em Minas Gerais, devem as suas denominações ao casal real. Já S. José del Rey, hoje Tiradentes, homenageava o príncipe herdeiro, que sucederia o pai como D. José I.

Ao tempo do “Onça”, a capital do Brasil era Salvador da Bahia, visto  desenvolver-se no nordeste a principal atividade da Colônia, o cultivo da cana de açúcar. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, capitania destacada de S. Paulo em 1720, houve o deslocamento da  capital para o Rio de Janeiro em 1763.

As fronteiras da colônia haviam sido alargadas pelos bandeirantes paulistas, conquista que ganhou foro de juridicidade pelo Tratado de Madrid, firmado em 13 de janeiro de 1750, o que legitimou a posse dos territórios situados a oeste da linha de Tordesilhas, com base no princípio do uti possidetis, pelo qual deve exercer o domínio aquele que tem posse longeva. Portugal foi representado pelo diplomata Alexandre de Gusmão,  nascido em Santos.

A economia da colônia, tanto na lavoura da cana de açúcar como na mineração do ouro, era baseada na mão de obra servil, com a importação de africanos, em longa e triste página da história, não virada completamente com a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

Ao tempo do “Onça”, só podiam exercer cargos públicos aqueles que demonstrassem “limpeza de sangue”, ou seja, ausência de antepassados negros, judeus ou muçulmanos. Presente no Brasil, a Inquisição perseguia os adeptos de ritos africanos ou de cultos protestantes, bem como os cristãos novos, suspeitos de praticar em segredo o judaísmo ou o islamismo.

 

 O ingresso de estrangeiros na colônia não era permitido, para que não cobiçassem as suas riquezas.   Também era vedado o comércio internacional. A abertura dos portos só ocorreria em 1808, com a vinda da família real ao Brasil.

Eram proibidas no Brasil as tipografias, a impressão de livros e a circulação de jornais, para manter os brasileiros na ignorância, evitando-se reivindicações políticas.

Há duas explicações para a alcunha que Vahia Monteiro ganhou do povo de “O Onça”, animal mais feroz da fauna brasileira. A primeira, mais fácil, é que era de gênio iracundo e voluntarioso, tendo frequentes acessos de fúria. A segunda, mais plausível, é que era demasiado rigoroso no cumprimento da lei, comportamento que exigia de todos, pelo que ganhou a hostilidade da Câmara, do ouvidor e do juiz de fora, fazendo-se inimigo do clero regular e secular.

Negava favores, tendo procurado restabelecer a justiça e a ordem, sendo criterioso no emprego da verba pública. Tratou de punir o descaminho do ouro das Minas Gerais, assegurando que fosse remetido a Portugal. Procurou garantir a tranquilidade pública, reprimindo com severidade implacável a malta de desocupados, desordeiros e ladrões. Quanto mais graduado o corrupto, maior a punição. O povo o prestigiava, mas a elite não o suportava.

Em 1711, o Rio de Janeiro fora tomado, em bem sucedida incursão, pelo corsário francês René Duguay-Trouin, que só o deixou mediante o pagamento de pesado resgate. Para defender a cidade, como alternativa à construção de uma muralha do Morro da Conceição ao do Castelo, que reputara inútil, Vahia Monteiro propôs insulá-la por um canal navegável da Prainha (atual Praça Mauá) ao Largo da Ajuda (atual Passeio Público), o que contrariou poderosos interesses da época.

Em carta dirigida ao Rei, afirmou: “Nesta terra, todos roubam, só eu não roubo”. Acrescentou que os brancos, pondo os pés no Brasil, nenhum queria trabalhar e, se Deus não lhes desse meios lícitos para passar a vida, costumavam sustentar-se com roubos e trapaças.

Vahia Monteiro ainda prestou auxílio à construção da Igreja da Irmandade do Rosário dos Pretos, onde permanece o seu retrato. Como todo visionário, que pretende reformar o mundo, sucumbiu às pressões dos poderosos interesses que se propusera a enfrentar. Destituído do cargo por seus inimigos, morreu em 1733.

Depois de sua passagem, a cidade do Rio de Janeiro entrou em progressiva degradação, o que faz com que ainda hoje se afirme: “No tempo do Onça é que era bom...”

 

Por Paulo Eduardo Razuk



Bibliografia:

1.            Passos, Alexandre,  O Rio no Tempo do “Onça”, p.107 / 119, Livraria São José,  Rio, 1965

2.            Laurentino Gomes, Escravidão, II, p. 151 / 154, Globolivros, Rio, 2021