Já era a segunda vez que ele
olhava o produto. Melhor dizendo, o preço do produto. Entre ele e o pacote havia mais coisas do que pode imaginar nossa vã filosofia: oito reais e
cinquenta centavos! Não era possível, tão próximo e tão distante. O rapaz já estava
começando a ficar nervoso, a menina do balcão, uma negra com cabelos coloridos
que trajava uma camisa encarnada com a legenda: “Lute como uma nordestina”,
olhava-o à distância como aprovando sua conduta política de comprar aquele
patético cuscuz.
O tempo passou e entrou um grupo
de meninas. Uma andava abraçada com outra e a terceira, por coincidência, usava
uma camisa branca com legendas em vermelho: Lute como uma feminista! Ele olhou
para elas e sorriu, sem disfarçar uma certa inveja com a leveza delas ao entrar naquela mercearia tão famosa do MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra).
Por um momento, sentiu-se humilhado. Sempre teve o famoso movimento como algo
dos oprimidos, dos miseráveis que queiram terra para plantar, mas como é que
agora, ele, estudante de direito, opressor da elite branca, teria que contar centavos
para comprar uma comida comumente tão barata.
Foi escorregando por entre as
prateleiras para sair da mercearia, mas o olhar investigador da menina do caixa
o seguia. De repente a estocada: Não vai levar o cuscuz? Aquilo ali foi como um
punhal no coração. A humilhação era pública, ela certamente sabe que minha
dificuldade era o preço, uma vez que meu cabelo diz muito sobre minha
identidade ideológica com ela. Fez que não ouviu, deu boa tarde e saiu pela rua
do Imperador. De repente deu de cara com uma massa de mendigos que ficavam nas
calçadas da Igreja de Santo Antônio, pareciam que estavam morando ali, uma
situação muito precária. Andando por entre eles, com olhares perquiridores,
lembrou-se da menina do caixa e, por um momento, quase como uma reação
instintiva, tratou mal uma mulher que se aproximava para pedir.
Foi para casa andando, morava nas
Graças e a tarde estava amena. Chegou à casa na boca da noite e já sentiu um
cheiro agradável de cuscuz que vinha da cozinha, era o de Cupira. Quando viu a
mãe na varada ela disse: Aproveitei o cuscuz do café da manhã e fiz um charque
do jeito que você gosta. Ele agradeceu a ela, deixando para o mês que vem o
anúncio de sua nova escolha política: o veganismo. Hoje, mamãe, vou adorar
comer charque com o cuscuz de Cupira...
Recife, 13 de outubro de 2022
Antônio Manuel