13 outubro, 2022

O ato cuscuz

 
Já era a segunda vez que ele olhava o produto. Melhor dizendo, o preço do produto. Entre ele e o pacote havia mais coisas do que pode imaginar nossa vã filosofia: oito reais e cinquenta centavos! Não era possível, tão próximo e tão distante. O rapaz já estava começando a ficar nervoso, a menina do balcão, uma negra com cabelos coloridos que trajava uma camisa encarnada com a legenda: “Lute como uma nordestina”, olhava-o à distância como aprovando sua conduta política de comprar aquele patético cuscuz.

O tempo passou e entrou um grupo de meninas. Uma andava abraçada com outra e a terceira, por coincidência, usava uma camisa branca com legendas em vermelho: Lute como uma feminista! Ele olhou para elas e sorriu, sem disfarçar uma certa inveja com a leveza delas ao entrar naquela mercearia tão famosa do MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra). Por um momento, sentiu-se humilhado. Sempre teve o famoso movimento como algo dos oprimidos, dos miseráveis que queiram terra para plantar, mas como é que agora, ele, estudante de direito, opressor da elite branca, teria que contar centavos para comprar uma comida comumente tão barata.

Lembrou-se do café da manhã daquele dia. Adorava cuscuz e sua mãe serviu um que vem lá de Cupira, interior do estado, e que ela sempre comentava que era bom e barato, não chegava nem a um real. E ele agora ali, tendo que ser oprimido por quase 10 reais em uma comida tão simplória. Não tinha condições. Ôh glória! Um grito vindo da rua cortou suas reflexões...Ele queria poder comprar na mesma quantidade que sua mãe comprava o de Cupira, chegar em casa cheio de pacotes, e dizer: Esse aqui não tem transgênico! Era seu trunfo. Ah, sem esquecer, claro, que foi produzido pelas terras dos sem terras, agricultura familiar, ou seja, pelas genuínas mãos dos que trabalham sem olhar a lógica do mercado opressor. Seria sua tapa de luva na família tão patriarcal e que o cevava com o veneno da indústria alimentícia. Seu sonho havia se acabado, sem condições e dinheiro para isso.

Foi escorregando por entre as prateleiras para sair da mercearia, mas o olhar investigador da menina do caixa o seguia. De repente a estocada: Não vai levar o cuscuz? Aquilo ali foi como um punhal no coração. A humilhação era pública, ela certamente sabe que minha dificuldade era o preço, uma vez que meu cabelo diz muito sobre minha identidade ideológica com ela. Fez que não ouviu, deu boa tarde e saiu pela rua do Imperador. De repente deu de cara com uma massa de mendigos que ficavam nas calçadas da Igreja de Santo Antônio, pareciam que estavam morando ali, uma situação muito precária. Andando por entre eles, com olhares perquiridores, lembrou-se da menina do caixa e, por um momento, quase como uma reação instintiva, tratou mal uma mulher que se aproximava para pedir.

Foi para casa andando, morava nas Graças e a tarde estava amena. Chegou à casa na boca da noite e já sentiu um cheiro agradável de cuscuz que vinha da cozinha, era o de Cupira. Quando viu a mãe na varada ela disse: Aproveitei o cuscuz do café da manhã e fiz um charque do jeito que você gosta. Ele agradeceu a ela, deixando para o mês que vem o anúncio de sua nova escolha política: o veganismo. Hoje, mamãe, vou adorar comer charque com o cuscuz de Cupira...

Recife, 13 de outubro de 2022

Antônio Manuel