09 novembro, 2022

O Livro do Real

 

É inegável que Dante foi dos maiores poetas que a humanidade conheceu. Ladeia em grandeza com os luminares dessa arte tão densa e elevada. A Divina Comédia condensa o conhecimento medieval e consegue filosofar fazendo versos, e nos versos traduz teologia, e na teologia nos leva à história, à astronomia e o que mais produziu o gênio humano. Dante Alighieri foi um gigante do pensamento, embora tenha se filiado a uma vertente que visava a destruição do edifício cristão. Seu pensamento moderno antecipa alguns valores que serão coroados nos séculos vindouros, principalmente a partir do protestantismo. Não à toa que a tese de Hans Kelsen, pai do positivismo jurídico, foi baseada no pensamento do grande florentino.

Esse espaço não é para tratar da doutrina de Dante e nem da sua poesia, apenas uma digressão bem simples acerca de um livro que o escritor leu e lia e que as gerações atuais, principalmente as que vivem na cidade grande estão tolhidas, que é a leitura do livro da natureza.

Andando pelo purgatório, apenas para exemplificar, no Canto III, temos essa passagem:


“Como as ovelhas saem de mansinho

do reduto, e uma, e duas, e três são

baixando a terra os olhos e focinho;

E onde vai a primeira, as outras vão,

encostando-se a ela, se ali resta,

quedas e simples, sem saberem quão”[1]

 

Seria possível escrever sem ver? Será possível fazer poesia sem ler o livro da natureza? São Bernardo diz que Deus escreveu dois livros: a natureza e as Sagradas Escrituras. Da natureza se pode tirar doutrinas e ensinamentos morais. Assim como Dante, o poeta Manoel Xudu tirou também elementos do que viu na leitura do mundo à sua frente:

 

Admiro o pica-pau
Trepado num pé de angico,

Pulando de galho em galho

Toco, toco, tico, tico,

Nem sente dor de cabeça,

Nem quebra a ponta do bico.

 

Como será possível essa geração atual, embebida de telas e de arranha-céus, escutar e ver o que a natureza fala? Como será possível ensinar a uma juventude que quando põe o pé no chão para correr, são admoestados com toda farmacopéia possível? Alguns outros cuidam até da leitura dos livros, mas descuidam da leitura da natureza, sonegando a visão que um poeta teve ao reparar o espinho e a flor e concluir: o espinho é o vigia da inocência da flor. Só quem viu isso, só quem parou para observar, conseguiu fazer essa leitura sublime, tão simples, tão singela, tão real e verdadeira.

 

A juventude está se tornando ignorante da realidade que o circunda, do mundo além dos seus olhos gadgetizados, que tem árvores, patos, gansos, cavalos, ovelhas. No máximo algum pet que caiba em um apartamento para acariciar os sentidos, pondo nele, quase sempre, nome de gente. Assim estamos sufocando, imbecilizando através da moda, matando a conexão verdadeira que há entre o homem e aquilo que é mesmo próprio dele: o mundo real que quando Deus fez, viu que era bom. A simplicidade da poesia verdadeira ou a grandeza da poesia universal só foi possível porque tais homens não abdicaram de ver e de aprender com a realidade que os circundou.

 

Quando o sol de manhã beija

A mais alta serrania

Nos retrata uma revista

Que a natureza envia

Ou um portador que vem

Trazer notícia do dia.

                                       Zé Soares, natural de Caruaru.



Recife, 09 de novembro de 2022.


Antônio Manuel


[1] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Bilíngue italiano/português. Tradução. Vasco Graça Moura. P. 337