É inegável que Dante foi dos
maiores poetas que a humanidade conheceu. Ladeia em grandeza com os luminares dessa
arte tão densa e elevada. A Divina Comédia condensa o conhecimento medieval e
consegue filosofar fazendo versos, e nos versos traduz teologia, e na teologia
nos leva à história, à astronomia e o que mais produziu o gênio humano. Dante
Alighieri foi um gigante do pensamento, embora tenha se filiado a uma vertente
que visava a destruição do edifício cristão. Seu pensamento moderno antecipa
alguns valores que serão coroados nos séculos vindouros, principalmente a partir
do protestantismo. Não à toa que a tese de Hans Kelsen, pai do positivismo
jurídico, foi baseada no pensamento do grande florentino.
Esse espaço não é para tratar da doutrina
de Dante e nem da sua poesia, apenas uma digressão bem simples acerca de um
livro que o escritor leu e lia e que as gerações atuais, principalmente as que
vivem na cidade grande estão tolhidas, que é a leitura do livro da natureza.
Andando pelo purgatório, apenas para exemplificar, no Canto
III, temos essa passagem:
“Como as
ovelhas saem de mansinho
do reduto, e
uma, e duas, e três são
baixando a terra os olhos e focinho;
E onde vai a primeira, as outras vão,
encostando-se a
ela, se ali resta,
quedas e simples,
sem saberem quão”[1]
Seria possível escrever sem ver? Será possível fazer poesia sem ler o
livro da natureza? São Bernardo diz que Deus escreveu dois livros: a natureza e
as Sagradas Escrituras. Da natureza se pode tirar doutrinas e ensinamentos
morais. Assim como Dante, o poeta Manoel Xudu tirou também elementos do que viu
na leitura do mundo à sua frente:
Admiro o pica-pau
Trepado num pé de angico,
Pulando de galho em galho
Toco, toco, tico, tico,
Nem sente dor de cabeça,
Nem quebra a ponta do bico.
Como será possível essa geração atual, embebida de telas e de arranha-céus,
escutar e ver o que a natureza fala? Como será possível ensinar a uma juventude
que quando põe o pé no chão para correr, são admoestados com toda farmacopéia
possível? Alguns outros cuidam até da leitura dos livros, mas descuidam da
leitura da natureza, sonegando a visão que um poeta teve ao reparar o espinho e
a flor e concluir: o espinho é o vigia da inocência da flor. Só quem viu
isso, só quem parou para observar, conseguiu fazer essa leitura sublime, tão
simples, tão singela, tão real e verdadeira.
A juventude está se tornando ignorante da realidade que o circunda, do
mundo além dos seus olhos gadgetizados, que tem árvores, patos, gansos,
cavalos, ovelhas. No máximo algum pet que caiba em um apartamento para acariciar
os sentidos, pondo nele, quase sempre, nome de gente. Assim estamos sufocando, imbecilizando
através da moda, matando a conexão verdadeira que há entre o homem e aquilo que
é mesmo próprio dele: o mundo real que quando Deus fez, viu que era bom. A
simplicidade da poesia verdadeira ou a grandeza da poesia universal só foi possível
porque tais homens não abdicaram de ver e de aprender com a realidade que os
circundou.
Quando o sol de manhã beija
A mais alta serrania
Nos retrata uma revista
Que a natureza envia
Ou um portador que vem
Trazer notícia do dia.
Zé Soares, natural de Caruaru.
[1]
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Bilíngue italiano/português. Tradução.
Vasco Graça Moura. P. 337