Maquiavel
discorre acerca da dificuldade de um príncipe governar sob uma monarquia mista.
É quando ele fala de Estado que é anexado a outro previamente existente,
podendo ser da mesma região e falar a mesma língua ou não. O florentino diz que
é mais difícil impor o mando a uma região de língua diversa, o que exigirá mais
habilidade do príncipe se impor. Analisando alguns fatos históricos, traz à
lume a ocupação de Luís XII, da França, nos territórios da Itália, dizendo que
ele fez tudo oposto daquilo que deveria ser feito para manter o domínio
sobre um Estado estrangeiro.
Esse trecho de Maquiavel sofreu um comentário de Napoleão nos seguintes termos: Imporei aí, por decreto, o uso da língua francesa, começando pelo Piemonte, que é a província mais próxima da França. Nada é mais eficiente, para introduzir os costumes de um povo em outro estrangeiro do que impor-lhes sua língua.[1]
Essa nota de
Napoleão é muito interessante e dela podemos tirar algumas conclusões que
trazem luz à situação de crise religiosa por que estamos passando. A Igreja
abdicou do idioma latino a partir das mudanças introduzidas no Concílio
Vaticano II, através da Constituição Dogmática Sacrossanctum Concilium,
embora o título do documento seja ironicamente em latim, na prática,
fulminou-se a língua de Cícero, ou melhor, a língua oficial da Igreja. O latim
fora um canal linguístico pelo qual a Igreja batizou vários povos, aplicou os
sacramentos, celebrou a liturgia. O perfume desse idioma foi santificado por milênio
pela Igreja, e no século XX, o século da informação, da tecnologia, do
progresso, do conhecimento científico, defenestrou-se aquilo que dava o caráter
idiomático da Igreja, foi uma desistência de uma das marcas mais importantes de
sua identidade.
O latim era o
idioma da Igreja, além do mais, exigia-se do sacerdote uma habilidade para
manipular a língua, o que necessariamente enriquecia seu cabedal formativo. Nos
países de língua latina, como o nosso, última Flor do Lácio, o estudo do latim
dava maior profundidade intelectual aos padres, além de abrir-lhes as portas
para um universo cultural muito elevado. Isso de alguma forma chegava na
população mais simples, que teria acesso ao latim na liturgia, nos cantos da
Igreja, como essa senhora[2]
,que ainda lembra o Credo e canta com admirável perfeição.
Tudo isso hoje
derruiu e o nível geral dos sacerdotes é muito baixo, do ponto de vista
intelectual. Um dos principais ataques que a Igreja sofre é o ataque à
inteligência e um dos graves capítulos dessa investida foi justamente na
abdicação do latim na liturgia da Igreja, que trouxe consequências trágicas.
Antes a Igreja introduzia sua doutrina nos costumes do povo, e isso elevou a
sociedade; hoje, como ela perdeu o controle idiomático, o populus passou
a introjetar na vida da Igreja o espírito do tempo que é traduzido e captado
pela língua viva. As palavras são como bombas semióticas que carregam idéias,
de modo que, absorver certas palavras, mesmo corretas, em um contexto santo,
pode desvirtuar o sentido religioso que você quer imprimir a ela. Essa liquidez
linguística não fica indiferente ao espaço sagrado e a aceitação da dinâmica de
um idioma vivo irá também dinamizar o pensamento daqueles que operam o idioma
na linguagem sacerdotal, é o processo de laicização da religião, e ela se
manifesta claramente na postura do clero, na indumentária, na música, enfim, Roma
foi invadida.
De
um lado esse rebaixamento do clero ,
despindo-se de sua dignidade sacerdotal manifestada na ausência dos hábitos, batinas,
etc., é acompanhada de uma elevação do povo à condição de sacerdote, posto que,
o Concílio quis resgatar a importância da assembléia litúrgica (povo sacerdotal,
corpo de Cristo), toda ministerial e sujeito da celebração, para arrematar: É
todo povo que, presidido por seus pastores, celebra a liturgia![3]
O padre é apenas um facilitador, para usar uma expressão corrente.
O livro de estudos
da CNBB citado acima ainda diz que a introdução do idioma pátrio na liturgia
prioriza a participação plena, consciente e ativa na liturgia, adaptando-se
à índole dos diferentes povos. Ou seja, a liturgia passa evidentemente,
como disse Napoleão no comentário a Maquiavel, a ser saborizada pelo perfume dos
povos, pelo direito do homem e do cidadão, que será cada vez mais incensado nos
altares, do homem falante e barulhento, do homem que nos alertou o profeta
Jeremias: maledictus homo qui confidit in homine.[4]
Recife, 04 de
outubro de 2023, festa de São Francisco de Assis.
Antônio Manuel
da Silva Filho