O Recife povoa
meu pensamento com suas pontes, rios e casarões. De tanto nele pensar, comecei
a lembrar dos que desistiram daqui e, para minha surpresa, não foram poucos.
Muitos amigos saíram do Recife como quem sai de uma prisão. Vejo-os visitar a
cidade com um certo alívio, como se me dissessem com o olhar: Isso não me
pertence mais. Um amigo, médico do Sírio Libanês, arcovedense aclimatado no
Recife por algum tempo, quando está por aqui de visita, percebo uma certa
pressa, como se tudo devesse acontecer rápido para se livrar e cair de volta na Paulicéia.
Outro dia, faz mais ou menos um ano, depois de certo tempo vivendo no Recife sem receber ninguém, fizemos um passeio com amigos distintos vindos de Belo Horizonte e São Paulo. Andando ali pela rua Nova, passando pela praça Joaquim Nabuco, tive veleidades de dizer que não tínhamos passado por guerra nenhuma. Os sobrados arruinados chamavam atenção, os prédios pichados, o lixo impregnado, a sujeira constante, tornava mais evidente a destruição nossa de cada dia, talvez porque o olhar do visitante dava mais amplidão ao caos.
Mas Recife
está mesmo ruim. Ruas, ruínas, sobrados caindo aos pedaços, pichações, sujeira.
O centro tomado pela figura cada vez mais presente na paisagem: os noiados,
homens e mulheres que vivem a ermo, tocados pelas drogas que corroem seus
cérebros e corpos, o fim da linha.
Agora
lembro de outro casal que se livrou do Recife e foi para o Rio de Janeiro.
Vi-os recentemente. Ele estava muito obeso, estava tão feliz que se espalhou em
massa gorda, como se diz na nutrição. Olhou para mim e mirou no entorno,
estávamos na rua da Conceição. Ao perguntar se eu morava na mesma casa de há
uns 4 anos atrás, tive a impressão de ser um detento fitando um homem em
liberdade. Falamos das benesses do sul e dos males do nordeste. Lá parecia
Pasárgada, aqui parecia Alcatraz. Tudo aqui sem graça, nem para as distrações infantis
estávamos indo bem.
As
crianças em casa enfurnadas, não que isso seja um problema exclusivamente
local, mas é uma chatice de dar pena. As crianças vão esvaindo seus dias presas
em casa, sem o universalismo das ruas e de suas brincadeiras folclóricas e atemporais.
Não se tem mais a bola de gude, que na minha cidade chamávamos chimbra; o peão
se acabou; a peia escondida para bater nos amigos que não alcançavam a mancha; o
esconde-esconde; o cuscuz e tantos outros ritos de passagem estão esquecidos e
substituídos pelas telas e pelas seguranças gélidas dos shoppings ou dos
prédios e suas áreas sociais. Aqui não se tem zoológico para se ver, não se tem
aquário para contemplar, nada de tão atrativo, mas o prefeito novo diz que a
cidade está ficando nova.
De
fato, muitas praças foram chegando desde o início dessa última administração
municipal. Estávamos tão indigentes de algo minimamente agradável, que muitos
pensaram que as praças e as ruas calçadas eram a contemplação do Recife redivivo.
Crianças brincando e correndo nos parques, famílias orgulhosas caminhando com
seus pets, tudo tão monótono, mas necessário.
No
mais a cidade segue se autodestruindo, o passado sendo carcomido pelo abandono
e indiferença, as ruas se perdendo sem gente e sem metafísica, tão secas e
vazias que até as assombrações do Recife velho não fazem mais sentido. Quando
até as assombrações partem, os que vivem vão perdendo o sentido do tempo e da
eternidade.
Antônio
Manuel, 08 de agosto de 2024.