Desço à rua, é festa de Reis. As pastoras carregam o traje azul e encarnado pelas velhas ruas do Recife. Mais uma vez vou enfrentar Dantas Barreto, melhor dizendo, a avenida que se veste com esse nome, a Presidente Vargas dos pobres, como dizia Hermilo Borba Filho. Era fim do dia, o ocaso do comércio, e já havia a azáfama daqueles movimentos agoniados de guardar os produtos e o peso do trabalho do dia, as pessoas tinham expressão de pressa e cansaço. O lixo atapetava o chão. Ele era onipresente. Em todo canto havia lixo: na avenida, na calçada, no poste, na rua, no meio fio, nos fios que tanto poluem o Recife. Havia muito lixo na Dantas Barreto, mas as pastoras passavam sorrindo e cantando, cantando e dançando.
Mais uma vez eu enfrentava a
Dantas Barreto. Meu carro dando voltas para achar uma vaga. Rezamos para as
almas do purgatório e de repente uma viva alma apontou o caminho. O milagre
estava se dando ali naquele exato momento. O Recife tem o dom de dificultar a
vida de seus moradores, dos carros e das motos. Mas eu parei. Um caboclo
chamado índio veio ao meu encontro e sentenciou: “É dei mi réi, meu patrão.
Pode ser no pix; agora tem que pagar antes”. “Certo, me diga o pix”, eu
respondi. Ele apontou um amigo na esquina e lá fui eu. Paguei e comprovante exibido.
Minhas filhas estavam ao meu lado. Nessa rua em que estacionei o cenário se
repetia: lixos, dejetos e cheiro acre de urina. Ao pagar, um cachorro preto, de
porte pequeno, desses vira-latas típicos, aproximou-se de uma das minhas
filhas. Pensei que ele estava brincando. Ela se assustou e ele latiu. De
repente apareceu mais um, dois, três, quatro. Parecia uma matilha. Começaram a
latir agressivamente para nós. Eu peguei as três meninas no braço e comecei a
chutar no focinho dos cachorros. Do outro lado da rua as pastoras andavam cantando
e dançando, dançando e cantando. Fomos
socorridos por alguns homens da rua e os cachorros cessaram os ataques, minhas
filhas apavoradas, em pânico. Essa foi a chegada nas imediações do Pátio de São
Pedro.
O palco no centro do pátio estava
armado. Minha filha mais velha chorava dizendo que odiava cachorros, que não
era para aquilo ter acontecido. Fomos até o corpo de bombeiros que aplicou álcool
a 70 nas meninas, embora não tivesse ocorrido nenhum dano. A socorrista nos
tranquilizou; caiu a noite e com ela vieram as pastoras. Os clarins tocavam
anunciando a chegança: Boa noite meus senhores todos, boa noite senhoras também/
somos pastoras, pastorinhas belas, alegremente vamos à Belém...” . Pastoras
de vários bairros, pobremente ornadas, sorrindo, sustentando uma cultura
secular que ainda insiste em ocorrer, embora com seu sentido original deveras
maculado.
Agora imaginem o palco. De lá
saiam duas vozes: um homem e uma mulher. Pareciam gritar. De frente deles,
imponente estava a Concatedral de São Pedro dos Clérigos, com sua beleza
arquitetônica ímpar. Uma nódoa do passado no bairro de São José, uma réstia de civilidade
e ordem. O berreiro que saia do palco não estava nem aí para a nódoa do passado
e nem para as tradições, mas tecia loas à prefeitura do Recife. Era prefeitura
isso, a mulher dizia e emendava: Viva as pastoras; prefeitura aquilo, dizia o
homem e emendava: Viva a Diana. Prefeitura aquilo outro e atulhava: Viva as
nossas tradições. Parafraseando Hermilo Borba Filho, em uma crônica escrita em
1972, quando via um desfile de Carnaval na mesma Dantas Barreto: “Pela primeira
vez na minha vida eu vi pastoras dançarem ao som de discursos”. O problema é antigo e não tem mais solução.
Ao fim, a mulher insistia: ”Aqui
não tem crença. Aqui é a união de todas as crenças, de todos os credos. Unam-se.
Abrace a pessoa que está ao seu lado”. Enquanto a mulher fazia esse discurso
magnífico as pastoras iam desfilando, algumas já desanimadas, o povo se apertando
para ver a lapinha que já estava posta no centro da roda de pastoras. Antes de
queimar a lapinha, outra rodada de discursos. Fala o secretário disso e daquilo
outro, um discurso tão desbaratado que, embora fosse noite, ao fim da sua intervenção,
desejou bom dia a todos, o que foi recepcionado com risada do populus.
A nossa lapinha
Já vai se queimar
E nós, pastorinhas,
Devemos chorar
De repente o fogo. Atearam fogo na lapinha. As pessoas aplaudiam.
Muitos erguiam os braços armados com seus smartphones bem-posicionados
para captar o momento. A mulher não parava de discursar, queimando com suas
palavras todo o sentido real daquela festa: Natal, reis magos, Nossa Senhora,
São José e Nosso Senhor Jesus Cristo. Tomaram tudo, até nossas tradições mais
genuínas e que nasceram da nossa fé. Tomaram tudo. Como diz a música:
A nossa lapinha
Já está se queimando
E o nosso brinquedo
Está se acabando.
Está se acabando...
Recife, 07 de janeiro de 2025
Antônio Manuel da Silva Filho