07 janeiro, 2025

A queima da lapinha e do bom senso

 


Desço à rua, é festa de Reis. As pastoras carregam o traje azul e encarnado pelas velhas ruas do Recife. Mais uma vez vou enfrentar Dantas Barreto, melhor dizendo, a avenida que se veste com esse nome, a Presidente Vargas dos pobres, como dizia Hermilo Borba Filho. Era fim do dia, o ocaso do comércio, e já havia a azáfama daqueles movimentos agoniados de guardar os produtos e o peso do trabalho do dia, as pessoas tinham expressão de pressa e cansaço. O lixo atapetava o chão. Ele era onipresente. Em todo canto havia lixo: na avenida, na calçada, no poste, na rua, no meio fio, nos fios que tanto poluem o Recife. Havia muito lixo na Dantas Barreto, mas as pastoras passavam sorrindo e cantando, cantando e dançando.

Mais uma vez eu enfrentava a Dantas Barreto. Meu carro dando voltas para achar uma vaga. Rezamos para as almas do purgatório e de repente uma viva alma apontou o caminho. O milagre estava se dando ali naquele exato momento. O Recife tem o dom de dificultar a vida de seus moradores, dos carros e das motos. Mas eu parei. Um caboclo chamado índio veio ao meu encontro e sentenciou: “É dei mi réi, meu patrão. Pode ser no pix; agora tem que pagar antes”. “Certo, me diga o pix”, eu respondi. Ele apontou um amigo na esquina e lá fui eu. Paguei e comprovante exibido. Minhas filhas estavam ao meu lado. Nessa rua em que estacionei o cenário se repetia: lixos, dejetos e cheiro acre de urina. Ao pagar, um cachorro preto, de porte pequeno, desses vira-latas típicos, aproximou-se de uma das minhas filhas. Pensei que ele estava brincando. Ela se assustou e ele latiu. De repente apareceu mais um, dois, três, quatro. Parecia uma matilha. Começaram a latir agressivamente para nós. Eu peguei as três meninas no braço e comecei a chutar no focinho dos cachorros. Do outro lado da rua as pastoras andavam cantando e dançando, dançando e cantando.  Fomos socorridos por alguns homens da rua e os cachorros cessaram os ataques, minhas filhas apavoradas, em pânico. Essa foi a chegada nas imediações do Pátio de São Pedro.

O palco no centro do pátio estava armado. Minha filha mais velha chorava dizendo que odiava cachorros, que não era para aquilo ter acontecido. Fomos até o corpo de bombeiros que aplicou álcool a 70 nas meninas, embora não tivesse ocorrido nenhum dano. A socorrista nos tranquilizou; caiu a noite e com ela vieram as pastoras. Os clarins tocavam anunciando a chegança: Boa noite meus senhores todos, boa noite senhoras também/ somos pastoras, pastorinhas belas, alegremente vamos à Belém...” . Pastoras de vários bairros, pobremente ornadas, sorrindo, sustentando uma cultura secular que ainda insiste em ocorrer, embora com seu sentido original deveras maculado.

Agora imaginem o palco. De lá saiam duas vozes: um homem e uma mulher. Pareciam gritar. De frente deles, imponente estava a Concatedral de São Pedro dos Clérigos, com sua beleza arquitetônica ímpar. Uma nódoa do passado no bairro de São José, uma réstia de civilidade e ordem. O berreiro que saia do palco não estava nem aí para a nódoa do passado e nem para as tradições, mas tecia loas à prefeitura do Recife. Era prefeitura isso, a mulher dizia e emendava: Viva as pastoras; prefeitura aquilo, dizia o homem e emendava: Viva a Diana. Prefeitura aquilo outro e atulhava: Viva as nossas tradições. Parafraseando Hermilo Borba Filho, em uma crônica escrita em 1972, quando via um desfile de Carnaval na mesma Dantas Barreto: “Pela primeira vez na minha vida eu vi pastoras dançarem ao som de discursos”.  O problema é antigo e não tem mais solução.

Ao fim, a mulher insistia: ”Aqui não tem crença. Aqui é a união de todas as crenças, de todos os credos. Unam-se. Abrace a pessoa que está ao seu lado”. Enquanto a mulher fazia esse discurso magnífico as pastoras iam desfilando, algumas já desanimadas, o povo se apertando para ver a lapinha que já estava posta no centro da roda de pastoras. Antes de queimar a lapinha, outra rodada de discursos. Fala o secretário disso e daquilo outro, um discurso tão desbaratado que, embora fosse noite, ao fim da sua intervenção, desejou bom dia a todos, o que foi recepcionado com risada do populus.

A nossa lapinha

Já vai se queimar

E nós, pastorinhas,

Devemos chorar

 

De repente o fogo. Atearam fogo na lapinha. As pessoas aplaudiam. Muitos erguiam os braços armados com seus smartphones bem-posicionados para captar o momento. A mulher não parava de discursar, queimando com suas palavras todo o sentido real daquela festa: Natal, reis magos, Nossa Senhora, São José e Nosso Senhor Jesus Cristo. Tomaram tudo, até nossas tradições mais genuínas e que nasceram da nossa fé. Tomaram tudo. Como diz a música:

 

A nossa lapinha

Já está se queimando

E o nosso brinquedo

Está se acabando.

 

Está se acabando...


Recife, 07 de janeiro de 2025

 

Antônio Manuel da Silva Filho