Em uma manhã
de janeiro do corrente ano da graça de 2025 passei meus olhos diante de uma
estante da biblioteca de minha casa e tirei de forma aleatória um livro de
poesia, Alma impressa, do poeta Vinícius Gregório, de São José do Egito,
lá Pajeú das Flores. Abro direto no poema Infância:
“Quem nunca sentiu saudade
Do tempo que era criança!?”
Até aí tudo bem,
nada demais, parece lembrar um poema bem famoso e conhecido. Fui lendo e me
deparei com a seguinte estrofe:
Foi lá que joguei pião
Como ninguém mais jogava.
E segurava na mão,
Por enquanto ele rodava...
Nas voltas que ele fazia,
Eu, inocente, não via
Que o mundo girava mais.
(...)
Ao ler os versos,
lembrei de um pião carrapeta que eu tinha quando criança, era bem pequeno, mas
parecia que ganhava vida própria quando eu jogava. Ali na frente da minha casa,
dia de feira, jogava com outros meninos, e o mundo girava mais do que o pião, e
agora, passado mais de 30 anos, cá estou eu lendo esses versos saudosos.
Nas ruas das
cidades grandes, feitas de asfalto, vai cabendo muito carro e muita moto, mas o
pião não tem mais espaço. Jogo bom é em terra de barro, daquelas pisadas e
amassadas para receber os jogadores; uns mais habilidosos que trazem o pião na
linha e levam para a mão e o brinquedo girando rápido, sem parar; mas o mundo,
como diz o poeta, gira mais ainda, traz o tempo que é implacável, com seus
progressos, com as crianças que não brincam mais, com as distrações modernas
que paralisam a infância diante das telas.
Li esses versos e ele ficou ecoando em mim.
Infância, Catende, pião, dia de feira, alegria de brincar na rua, tudo veio sentindo
saudade do tempo que era criança. Guardo o livro do poeta Vinícius, sento-me na
minha cadeira de balanço e ao lado dela jazia um livro de Câmara Cascudo que
chegara em casa no dia anterior. Abri o livro a esmo e li na primeira página
que me apareceu: “Brinquedos de dois mil anos”. Não acreditei no que estava
lendo, fiquei com vontade de rir: “Encontrei na esquina dois meninos jogando
pião. Naquela ponta de calçada, numa cidade nordestina do Brasil, vivia, atual
e moderno, um brinquedo de mais de dois mil anos. Jogaram-no as crianças de
Atenas e de Rodes, há trinta séculos. Os gregos chamavam de strombos e
os romanos de turbo”.
O brinquedo era tão especial que ainda nos diz
Cascudo: “Nas antiquíssimas civilizações micênicas, cuja idade é motivo de
controvérsia arqueológica, encontramos strombos, com outros
brinquedinhos, nas sepulturas das crianças. As crianças, indo para o mundo
misterioso das sombras, levavam os encantos terrenos, os brinquedos felizes que
haviam dado as melhores horas”.
Que mistério foi esse do pião que em pouquíssimo
tempo me sacudiu da infância catendense aos brinquedos da Grécia e de Roma.
Parece que a biblioteca fala conosco. Seria apenas coincidência? O mundo da
infância parecia se abrir com um portal através das letras. O dia prosseguiu e
sai para trabalhar, nada lembrando a risadagem dos meninos jogando
compromissados com dois mil anos de história pelas ruas...
Antônio Manuel, Recife, 22 de janeiro do ano da
graça de 2025