22 janeiro, 2025

Dois mil anos em janeiro

 

Em uma manhã de janeiro do corrente ano da graça de 2025 passei meus olhos diante de uma estante da biblioteca de minha casa e tirei de forma aleatória um livro de poesia, Alma impressa, do poeta Vinícius Gregório, de São José do Egito, lá Pajeú das Flores. Abro direto no poema Infância:

“Quem nunca sentiu saudade

Do tempo que era criança!?”

 

                Até aí tudo bem, nada demais, parece lembrar um poema bem famoso e conhecido. Fui lendo e me deparei com a seguinte estrofe:

 

Foi lá que joguei pião

Como ninguém mais jogava.

E segurava na mão,

Por enquanto ele rodava...

Nas voltas que ele fazia,

Eu, inocente, não via

Que o mundo girava mais.

(...)

 

                Ao ler os versos, lembrei de um pião carrapeta que eu tinha quando criança, era bem pequeno, mas parecia que ganhava vida própria quando eu jogava. Ali na frente da minha casa, dia de feira, jogava com outros meninos, e o mundo girava mais do que o pião, e agora, passado mais de 30 anos, cá estou eu lendo esses versos saudosos.

               

                Nas ruas das cidades grandes, feitas de asfalto, vai cabendo muito carro e muita moto, mas o pião não tem mais espaço. Jogo bom é em terra de barro, daquelas pisadas e amassadas para receber os jogadores; uns mais habilidosos que trazem o pião na linha e levam para a mão e o brinquedo girando rápido, sem parar; mas o mundo, como diz o poeta, gira mais ainda, traz o tempo que é implacável, com seus progressos, com as crianças que não brincam mais, com as distrações modernas que paralisam a infância diante das telas.

               

Li esses versos e ele ficou ecoando em mim. Infância, Catende, pião, dia de feira, alegria de brincar na rua, tudo veio sentindo saudade do tempo que era criança.  Guardo o livro do poeta Vinícius, sento-me na minha cadeira de balanço e ao lado dela jazia um livro de Câmara Cascudo que chegara em casa no dia anterior. Abri o livro a esmo e li na primeira página que me apareceu: “Brinquedos de dois mil anos”. Não acreditei no que estava lendo, fiquei com vontade de rir: “Encontrei na esquina dois meninos jogando pião. Naquela ponta de calçada, numa cidade nordestina do Brasil, vivia, atual e moderno, um brinquedo de mais de dois mil anos. Jogaram-no as crianças de Atenas e de Rodes, há trinta séculos. Os gregos chamavam de strombos e os romanos de turbo”.

 

O brinquedo era tão especial que ainda nos diz Cascudo: “Nas antiquíssimas civilizações micênicas, cuja idade é motivo de controvérsia arqueológica, encontramos strombos, com outros brinquedinhos, nas sepulturas das crianças. As crianças, indo para o mundo misterioso das sombras, levavam os encantos terrenos, os brinquedos felizes que haviam dado as melhores horas”.

 

Que mistério foi esse do pião que em pouquíssimo tempo me sacudiu da infância catendense aos brinquedos da Grécia e de Roma. Parece que a biblioteca fala conosco. Seria apenas coincidência? O mundo da infância parecia se abrir com um portal através das letras. O dia prosseguiu e sai para trabalhar, nada lembrando a risadagem dos meninos jogando compromissados com dois mil anos de história pelas ruas...

 

Estou agora de terno e paletó, na recepção de um órgão público, muita gente entrando e saindo das diversas portas, estou ali esperando ser atendido, prazos que passam, responsabilidades assumidas, o mundo sério dos adultos. Não é mentira o que vou contar, dou testemunho do que vi e li. Ao lado das cadeiras da recepção uma pilha de livros escolares. Levantei-me, peguei o primeiro livro de forma aleatória. Era o fim da manhã, de algum dia de janeiro do ano da graça de 2025. Leio perplexo na primeira página que abro: Primeiro, enrola-se a corda no pião, depois, é só lançar o pião no chão, puxando a corda para ele girar sobre sua ponta.

 

 

Antônio Manuel, Recife, 22 de janeiro do ano da graça  de 2025